Um Lugar Silencioso (2018) - Crítica


Um dos meios mais prazerosos de se experimentar qualquer conteúdo é através da despretensão. Não falo aqui - pelo menos não apenas - de desconhecer sua sinopse, evitar trailers. Mas, principalmente, de expectativa. Ir ler algum livro, ver algum filme ou escutar algum álbum musical quase que por hábito, destituído da ansiedade que nos aguarda, por exemplo, quando conferimos materiais de artistas que prezamos - e daí vem a decepção.

Claro que isto não glorifica o que consumimos. Ainda pode ser ruim. Mesmo assim, se não aguardávamos nada, não há frustração. Agora, quando o que é entregue é de nível acima da média, surpreendente, é que uma memória positiva se forma, ao extrair o inesperado e tornar uma viagem monótona em algo prazeroso e reconhecido. 

Este é o caso que tive com "Um Lugar Silencioso".

Ambientando no que se parece o presente, porém em realidade distópica, semanas após uma raça alienígena hostil invadir o planeta e, aparentemente, dizimar a população. Nesta situação inóspita, conhecemos os "Abbott", família que vive numa região florestal em Nova Iorque, distante da civilização, com pequenas fazendas e casas nos arredores. 

O motivo para esse isolamento é claro: do pouco que se sabe destes seres, o mais crucial e que permite a sobrevivência cautelosa é de que eles não veem, porém caçam pela aprimorada audição. Característica revelada ainda antes do letreiro com o título ornar a tela, já nos fisgando com intensidade e angustia.


Intensidade e angustia, dois termos que bem definem toda a fita. Se sua proposta é arriscada, lembrando brevemente o livro "Caixa de pássaros", em que um mal misterioso espreita, porém sem permitir ser visto, a condução não deixa dúvidas de que se trata de um exemplar notório e que será lembrado com carinho pelo público. Se inicialmente parece um espécime valoroso do nomeado "post-horror", sem exposições típicas do gênero, até a quebra de convenções que já vimos em Babadook, A Corrente do Mal, A Bruxa e o candidato a clássico, Corra!, o avançar o adequaria bem a se encaixar na franquia Cloverfield - muito mais que o Paradoxo, aliás -, como uma amostragem espacial diferente no mesmo tempo que vimos em Rua Cloverfield, 10. 

As semelhanças são consideráveis: temos uma pequena escala, poucos personagens e um clima claustrofóbico, umbroso e incognoscível, onde a presença do terror, do perigo é palpável, mesmo que não seja visto. Ele pode nunca chegar, mas também obliterar o terreno em questão de segundos - ao simples cair de uma lâmpada. O conhecimento disto torna o espectador cúmplice do suplício perene dos Abbott, em que a tensão gerada por qualquer objeto em cena que possa provocar um leve ruído nos coloca em alarme.

John Krasinski, que dirige sua terceira película, se distancia do estigma Jim Halpert, seu excelente papel em "The Office", como também projeta uma carreira auspiciosa por trás das câmeras. Renovado e imponente, ele adquire uma aura primitiva de sobrevivência e zelo como os de Viggo Mortensen em "A Estrada", porém sempre caloroso com seus filhos, sem perder a sanidade com o contexto. O fato de formar um casal no mundo real com sua parceira na história, Emily Blunt, deixa a química natural, como se ambos cuidassem da própria prole, estes sem laços sanguíneos verídicos, mas que encarnam competentemente os elos mais frágeis da orbe familiar. 


Com camadas que cabem à interpretação de quem vê, é ao menos clara a intenção de retratar a importância de nossos entes queridos em situações extremas, sendo cada integrante um pilar essencial para não desmoronar as estruturas do outro, levando todos a estados de selvageria pessoal para se resguardar dos estranhos riscos que os espreitam. Isto permite a Emily Blunt brilhar tanto quanto uma Ripley em Aliens quando seu instinto materno é posto em jogo, mesmo na mais adversa situação, nos tendo imersos junto à sua aflição. 

Composto em meio ao silêncio, as cenas com sons ganham mais virtudes quando percebemos sua ausência até então, inclusive o simples chapinhar da água. Em meio à recorrente urgência, há também momentos ternos de contato entre pai e filho que destoam da tragédia e nos preparam para sentir o pior quando um destes tem sua vida ameaçada, deixando quem assiste na mão do condutor, até o chegar do clímax, consciente em findar este antes de descambar em ação, que dizimaria o argumento da projeção. 

Se nós sofremos junto com estas figuras enclausuradas entre uma plantação (alusão a Sinais e suas próprias referências, então), é porque Krazinski conseguiu nos dominar, nos deixar mudos - feito raro nas salas nacionais hoje em dia -, atiçando aquele velho prazer masoquista de se divertir pelo sofrimento fictício, o que buscamos ao vermos filmes como este, é claro.

Tão surpreendente que traz Michael Bay como produtor - ou seja, um raro momento bom deste megalomaníaco -, "Um Lugar Silencioso" valoriza o ouvir e dignifica o dom de se expressar com palavras como privilégio, nos raros momentos em que os personagens conseguem trocar diálogos verbais.

Há uma crítica contemporânea clara em como banalizamos tudo em coprolalia e ódio, desperdiçando esta capacidade tratada com desleixo. Porém, esmiuçada sem moralismos ou exposições, mas com a sutileza que só se encontra no silêncio.

Nota 8.

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