Mulher-Maravilha 1984 (2020) - Crítica

Vivemos uma era em que filmes de herói são o mais rentável e midiático subproduto cinematográfico para os estúdios, numa escala bilionária. Porém, nenhum grupo ou encapuzado solo me encantou como os aranha de Sam Raimi e seu comprometimento com a fantasia e uma dramatização clássica. Claro, eu era criança na época, cresci com a trilogia, então há uma memória afetiva nesta simbiose. Mas mesmo em assistidas atuais, há uma ingenuidade com que Raimi submete seu universo que nenhuma produção contemporânea conseguiu sequer igualar. 

Desde então, vimos o nicho ganhar contornos sombrios e sérios (Nolan e Snyder) e descompromissados e robotizados (MCU). Se a industrialização bilionária das adaptações de quadrinhos tiraram a personalidade de grande parte do repertório da Marvel, e conferiram uma dose ridícula e imatura com a idealização de Snyder, criativamente incompatível com a responsabilidade lhe ofertada, foi somente com a saída do cineasta como condutor do DCU, que alguma esperança de individualização surgiu nos longas do gênero. Com Coringa e Aves de Rapina, a DC conseguiu entregar boas produções, divergentes entre si, mas competentes sem a amarra de um universo compartilhado. 

Porém, nenhum demonstrou mais potencial que o Wonder Woman de Patty Jenkins, pelo menos no que ela teve liberdade de realmente ser a autora do projeto. No entanto, ainda se via nitidamente a estética aborrecida de Snyder marcando cada frame da película, assim como as demandas de produtores, qual a diretora deu entrevista recentemente alegando a terem ordenado finalizar o filme com uma batalha épica - leia-se megalomaníaca e genérica -, ao contrário do planejado por ela. Com o sucesso absoluto da personagem vivida com pulso e carisma por Gal Gadot e o desapego do fracassado planejamento de Zack, era de se esperar uma sequência full Patty, o que traria, assumidamente, somente os lados positivos do primeiro filme.

E bem, não é exatamente isso que acontece em Wonder Woman 1984. Soa bastante contraditório, afinal, Jenkins dar essa entrevista logo antes da première do filme. Mulher-Maravilha conquistou com o encanto de Gal no papel da Amazona, a química com Pine, cenas de ação bem coreografadas e filmadas com deslumbre na figura de Diana num ambiente hostil, roto e granulado da 1ª Guerra Mundial, conseguindo transpor um filme de herói num histórico conflito bélico com todos os méritos que Capitão América desperdiçou. O terceiro ato fora criticado desde o lançamento como contrastante, bastante deslocado da trama contida do filme até o embate grandiloquente e recheado de CGI duvidoso contra o Ares de David Thewlis. O filme não deixou de ser bom por isso, mas sempre houve a clara suspeita de alguma interdição por parte do estúdio para tentar surpreender com ação desvairada. 

WW84, infelizmente, não entrega um trabalho consistente como os dois primeiros atos de seu predecessor, como parece quase todo, então, como o final básico e exagerado dele. O início da obra parece confuso sobre qual história contar, fazendo uma estranha introdução que surge como um temerário anúncio das questionáveis cenas de ação que veremos durante duas horas e meia, abocanhando um bom tempo de tela para brincar com o surgimento das Olimpíadas, mas também apresentar o tema de honestidade que permeará o discurso da produção. Ao voltar ao mundo moderno, no ano do título, a inserção de Diana como uma justiceira silenciosa e invisível é novamente feita com uma cena de montagem e movimentação de câmera bem capenga. Mas tudo bem, ali ainda temos a desculpa de que a intenção da protagonista é esconder sua identidade, logo, há um significado por trás dos ângulos que desviam o corpo todo da atriz o máximo possível. 

Após esse início tradicional de longas do tipo, buscando já conquistar o público com piruetas e golpes, a Diana de Gadot e Jenkins finalmente ganha tempo para respirar, e é nas relações da Princesa com outros personagens, mas principalmente no reencontro com Steve Trevor e no jogo de gato e rato que erige disso, que aquele encantamento dos melhores momentos do filme um aparece. A paixão com que Gal encara e sorri para Steve, assim como a autenticidade com que demonstra interesse na Barbara de Kristen Wiig, são os momentos mais genuínos da película, em que o elenco demonstra pleno domínio de seus personagens, com Gadot exalando confiança e poder, mas também generosidade, sabedoria e benevolência. É assim que o heroísmo mais está presente. Nestas cenas, a energia inocente, benigna e aventuresca dos Homem-Aranha de Raimi é ressuscitada, e o filme flerta com o brilhantismo e rejuvenescimento do gênero.

Daí em diante, no entanto, ou a Warner fez uma intromissão ainda maior, ou Jenkins fica sem desculpas para o emaranhado de caos e escolhas ruins em que se mete. A diretora disse ter optado pelos anos 80 para filmar a história por considerar a década como o ápice da civilização, e gostaria de ver a heroína enfrentar um vilão típico da época. Os anos 80 como bem conhecemos: cafona, extravagante, com seus vilões alucinados e tecnocratas, assim como o estabelecimento do gênero brucutu. As referências possíveis da época são muitas, como De Volta Para o Futuro, Indiana Jones, ET, Predador, mas a imagem de Jenkins da época parece ser outra, todas ruins. 

Não há equilíbrio nem inspiração em WW84 como filme de ação, com cenas filmadas genericamente, conformadas em tentar chocar pelo absurdo, sem remeter ao trabalho de montagem e decupagem que tornaram impressionantes os embates do primeiro capítulo. Julgo dizer que nenhum momento me empolgou minimamente perto de quando Diana avançou nas trincheiras contra o exército inimigo. A estafa é tanto que mesmo a trilha de Hans Zimmer, que costuma privilegiar e ampliar o efeito de tudo que se mete, aqui é quase inaudível, e possui destaque somente com faixas recicladas de trabalhos anteriores. Já o vilão típico do tempo, comentado por Patty e vivido por Pedro Pascal, representa bem a iconografia mais sarcástica e zombeteira possível, com um homem de roupas coloridas, discurso populista e sorriso cafajeste, perdido nos próprios devaneios de grandeza, num tom acima de qualquer seriedade que seria perdoável. Pascal atua num plano diferente de Gadot, Pine e Wiig, numa escolha que parece justamente uma sátira do estereótipo do antagonista daquela década. 

Entre transições que rondam o mundo de forma desinteressante, núcleos verborrágicos e revelações de roteiro convenientes e que surgem sem explicação ou de forma surrealmente rápida, o único recorte aproveitável desta continuação está num dos grandes acertos e prazeres do original, que é a relação de Diana com Steve, um amor que soa verdadeiro e belo pela sintonia dos atores, destacando uma cena que reflete e inverte uma passagem divertida do primeiro longa, onde Steve analisava o vestuário de Diana. Pine e Gadot parecem se divertir nas excentricidades dos anos 80 num dos únicos momentos em que ele é bem-vindo como comédia, além de evocar a reflexão sobre a insatisfação crônica dos tempos modernos, em que o mote da trama é a realização de desejos egocêntricos e egoístas por parte da população, quando um homem renascido após décadas, morto durante um período de guerra, se mostra admirado com as mais puras banalidades contemporâneas. Não há momento de batalha, aliás, que seja tão marcante quanto o voo do casal entre fogos de artifícios que homenageiam o 4 de Julho. O problema, entretanto, é que Mulher-Maravilha não é uma comédia romântica, e enquanto no primeiro filme a combinação dos dois era pilar para nos prender à trama nos importando com as figuras envolvidas, agora se torna muleta e única salvação. 

Se Raimi pecou por excesso de ideias e sofreu com a sabotagem do estúdio em Homem-Aranha 3, um filme falho, mas ainda carregado das qualidades da franquia, com personagens humanizados e arcos dramáticos honestos, WW84 naufraga por fazer quase todas as opções erradas, rejeitando a tonalidade de Snyder, mas ainda soando como uma sequência do combalido terceiro ato de seu antecessor, justamente aquele que a cineasta disse ter sido imposto pelo estúdio. 

Acho que alguém devia dizer a Jenkins, que com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.

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2 comentários:

  1. Explicou bem o longa, apesar de eu ter curtido o clima. Combina bem com o que chamam de "filme Sessão da Tarde". Leve, um tanto dramático e meloso.

    Tá sabendo da polêmica? Tão acusando o filme de estupro, pq a Diana se relaciona com o Steve no corpo de outro cara. A Forbes, a CBR e outras fontes publicaram sobre.

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    1. Bah, mais polêmica então. Só tinha ouvido falar daquela sobre extremismo e patriotismo americano, atacando o extremo-oriente. Mas essa aí, bem, não sei bem o que pensar.

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