Promising Young Woman (2020) - Crítica

Em 2016, Brock Turner, então estudante e nadador da Universidade de Stanford, foi condenado pelo  estupro de Chanel Miller, enquanto ela se encontrava inconsciente. A pena foi de somente seis meses, dos quais ele serviu três. O juiz do caso, Aaron Persky, justificou a punição branda com leniência ao condenado, o considerando um jovem promissor, no original, "A Promising Young Man".

Já Promising Young Girl, debut cinematográfico da diretora Emerald Fennell começa com Cassie, personagem de Carey Mulligan, completamente bêbada e tonta numa boate. À distância, três homens discutem alto e rindo sobre como gente como ela "pede" por algo, conforme a mulher, trôpega e com um vestido curto, luta para se manter acordada e abre as pernas com descontrole. Quando finalmente um deles se aproxima, um homem vivido por Adam Brody, ele demonstra a melhor das intenções. No tom da conversa com seus amigos, inclusive fica a sugestão se ele não resolveu tomar a iniciativa justamente para poupá-la de sofrer na mão de outro menos polido. Ele pergunta como ela se sente, se oferece para levá-la para casa, visto a condição deplorável que se encontra, mas de última hora, a carrega para seu apartamento. Sob o domínio das ações, a embriaga ainda mais e, sem anuência alguma, começa a beijá-la e apalpá-la. Somente nas preliminares - bem unilaterais, diga-se - que Cassie se mostra completamente sóbria e, demonstrando lucidez, pergunta o que ele está fazendo, deixando-o atônito. 

Há mais cenas como essa no filme, em que Cassie pretende estar vulnerável para aflorar o instinto de homens que escondem o lobo numa pele de carneiro, mas assim que descobrem sua normalidade, espantam-se e rapidamente mudam o comportamento, recusando o sexo e rejeitando a garota. Se autoafirmando como "caras legais". 

Mais tarde, descobrimos as razões de Cassie, ex-estudante exemplar de medicina que largou a faculdade e agora trabalha como garçonete e atendente num café pequeno de bairro, para cuidar de sua amiga e colega que, após ser estuprada numa festa de faculdade, entrou em depressão e se matou. 

O maior mérito de Emerald, aqui, não é somente o tom político e atual da história, afinal, o subgênero do "Rape Revenge" está se consolidando aos poucos, mas sim a flacidez com que ela lida com a fita, expondo, já em seu título, uma ironia carregada de humor negro. A obra transita entre o thriller para a comédia e inclusive o romance, abraçando pontualmente convenções do gênero, somente para subvertê-las e destruí-los assim que possível, sempre sem perder o discurso social injetado enquanto ela esquadrinha tantos arquétipos que infelizmente todos já sabemos existir, seja por alguma experiência real, seja por relatos de outrem, como o poderoso documentário The Hunting Ground, indicado ao Oscar de 2016 e que relata vários casos de assédio e estupro no ambiente "seguro" de universidades, em que o criminoso sempre passa impune e as vítimas são ridicularizadas ou ignoradas. 

Cassie e Nina, sua amiga, são, afinal, frutos de uma cultura patriarcal e misógina em que o comportamento do predador é endossado, e a mulher corre o risco de ser considerada culpada se resolver beber um pouco a mais, ou usar uma roupa provocante. Uma cultura moldada de homens e para homens, uma terra de jovens garotos promissores que não podem ter seu futuro arruinado por um erro infantil desses, não é? 

Similar a "Festa de Família", debut dinamarquês de Thomas Vinterberg, Emerald não está focada somente no choque pelo choque, mas na exposição contínua e frontal do absurdo até gerar uma confrontalização insuportável de se assistir. E isso talvez diga bastante sobre uma sociedade, em que a anuência e a vista grossa fazem parte do modus operandi, e é sempre mais fácil fingir não ter visto, não ter feito parte, em que muitos usam disso para justificar uma atitude cúmplice. E quando digo sociedade, isso se refere a ambos os sexos, afinal, vítimas ou não, o inconsciente coletivo que permeou essa cultura de fetichização machista também carrega muitas mulheres para a defensoria da ideologia patriarcal. Não em vão, vivemos no país que um cara que diz que uma mulher não merecia nem ser estuprada e compara o Brasil com uma virgem formosa que todo mundo quer pegar, é eleito presidente e defendido por milhões de pessoas que, você imaginaria, ficaria enojadas com tais comentários e se solidarizariam com o alvo de tamanho disparate. Ficar em cima do muro é tão somente outra agressão. 

Em um esforço ardiloso, perspicaz e inspiradíssimo, Emerald escancara as várias faces e hipocrisias que rondam os casos de assédio e estupro em nossa cultura. Se um dos exemplos é inclusive o papel feminino que permite isso, a escalação de Bo Burnham, um comediante realmente engraçado, carismático e doce, no papel de Ryan, ex-colega de Cassie e que, por alguns instantes, se mostra alguém correto, confiável e apaixonante, servindo de papel romântico a ela, sacudindo novamente a faceta do filme, para depois se revelar participante do caso que levou ao suicídio de Nina, é como um grande soco no estômago, ou a porrada que arrebenta o balão surpresa. A visão imaginária que temos de criminosos é disseminada desde sempre, em toda a mídia, inclusive filmes, como a do vilão de cartaz, aquele que somente de pôr o olho, sabemos se tratar de um sujeito ruim, quando o horror está justamente na normalização disto, não somente através da permissão implícita pelas autoridades e comunidades, mas na mera aparência e função da pessoa. 

No próprio caso de Brock Turner, a mídia, canais de comunicação grandes, o retrataram com frequência como estudante ou atleta, não o bandido estuprador que era, é e sempre será. Qualquer semelhança com nossos jornais e sua distinção de como lidar e se referir a pessoas de cor distintas não é coincidência, afinal, uma esfera social é retrato da outra, e se policiais sempre são mais agressivos e desconfiados de um tipo de cor, por que não seria diferente no resto? Quando falamos de um problema institucionalizado, seja de racismo ou machismo, é sobre isso. É sobre o garoto estuprador de família rica, frequentemente branco, estudante de medicina, que não pode ter sua vida destruída por um erro de quando era "criança", como tanto os agressores se declaram aqui. 

A abordagem irrealista e de estética de clipe adotada por Fennell é uma postura rebelde e revoltada, disfarçada com graça e artificialidade, para um problema real, frequente e que parece sempre passar despercebido e incólume (como não lembrar, também, do recente caso do empresário de Floripa, branco, boa pinta e rico, absolvido e com um advogado que humilhou a vítima ao vivo, com total passividade do juiz e autoridades presentes?).

Se não se consegue justiça e atenção ao aderir a uma postura séria e contida do tema, que servem basicamente como expiação para pessoas se sentirem culpadas por algumas horas, achando que seu papel é somente reconhecer e se chocar com a gravidade de algo distante, que alternativa melhor que apelar para o pop colorido e violento que marca os blockbusters e músicas de sucesso? 

Promising Young Woman é polêmico, contestador e autêntico. Porém, desalentadoramente triste. Não é um retrato tímido e distante de um caso específico, mas sim um julgamento público e ruidoso de uma epidemia mundial, uma epidemia tão descarada quanto escondida. Uma amostra da isenção e abandono de quem é esquecido por não fazer mais parte de uma civilização de aparências e que filtra somente o belo e sorridente, o espelho que mostra uma sociedade mesquinha e egoísta. Até que aconteça com alguém que você ama, e percebamos como estamos, então, sozinhos, e fazemos parte da causa.

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