O Último Duelo (2021) - Crítica
Se for se analisar, O Último Duelo, apesar da ousadia da personagem central em expor seu estupro para buscar justiça, não deixa de ser um filme sobre silêncio. Em que ela representa um ato de rebeldia que pega seu agressor de surpresa "Não acredito que ela falou!", um ato de rebeldia que simboliza muitas das mulheres que passaram por isso, e não somente na Idade Média, apesar de então ser um paraíso para o homem cometer este ato sem a probabilidade de acusação - o fato de ter melhorado, mas ainda se espelhar no atual, vide o caso recente em que o empresário André de Camargo foi duas vezes absolvido de estupro, mesmo a vítima sendo encontrada com sangue e seu sêmem, é apenas um atestado de nosso fracasso e que legitima o filme.
Os silêncios são justamente dessas mulheres, que tanto sofreram antes e depois da personagem Marguerite, como sua própria sogra que a julga por não ter omitido a verdade, como ela fez, assim como as camponesas que vibram pela vitória de seu marido no duelo que nomeia o título, certamente elas também vítimas de recorrentes abusos, mas sem a voz e o benefício da nobreza. O silêncio de Marguerite quando seu marido a pede para beijar um estranho para expressar "hospitalidade", ou quando é acusada e humilhada em um julgamento pouco sutil em lhe tentar persuadir a desfazer a alegação de estupro a um homem. É um reflexo sutil ao momento em que o ato foi perpetrado, em que ela berrou e bradou por auxílio conforme o Le Gris de Adam Driver a cercou e empurrou para a cama, clamores por uma ajuda que nunca veio. Ou como foi traída pela melhor amiga e atacada pela sofra, marido e aparentemente qualquer um quando resolveu levar adiante a verdade sobre seu estupro.
É importante notar essa sutileza entre o silêncio como consequência da inutilidade de falar na sociedade medieval, em que mesmo a sororidade familiar não poderia ser encontrada, como um argumento para defender Scott, um diretor que sim, nem sempre serve de exemplo para sutilezas, e até por isso soa estranho buscarem seu nome para dirigir o longa quando, apesar de se passar numa época e ser de um gênero que Ridley talvez seja o maior expoente do mercado blockbuster, não seja exatamente um épico histórico de ação, e em que o contexto temporal serve mais para espelhar a realidade contemporânea e tecer um ponto a partir disso.
Nunca saberemos qual seria a visão de outro cineasta para esta história, e a considerar o rendimento em bilheteria, será cada vez mais raro vermos filmes medievais, épicos ou não, produzidos em grandes estúdios, mas fato é que Scott consegue se adaptar bem à situação, e é imediato que lhe seja proposto outro brinde: considerando ser um homem branco e idoso, a taxação de conservador parece andar análogo a Scott, mas antes de tudo é preciso lembrar que foi este mesmo homem, que há mais de quatro décadas, pôs uma mulher como protagonista e líder da ação em um longa de "monstro", contrariando a tradição do gênero, assim como fez, posteriormente, odes de valorização a minorias em Thelma e Louise e Cruzada - como nem tudo é perfeito, fica sempre a contradição de escalar brancos para interpretar egípcios em Êxodo, mas também não podemos desconsiderar as demandas do estúdio e sacrifícios para angariar o orçamento necessário para uma produção dessas.
Imposição tal que já parece expressa no título, mesmo que este seja adaptado de um livro homônimo, pois a sugestão dele e de seu diretor - assim como o material promocional - são justamente a de um épico de guerra, e não um qual a luta serve de epílogo e, mesmo que bem filmada (afinal, é este o ponto forte do cineasta), é quase que uma elegia em que a grande vítima está fora do centro das atenções e, de uma forma ou de outra, já derrotada pelo panorama geral em que se lê a situação.
Mas isto pode ser somente considerado um equívoco de marketing, e muito malsucedido, e não de narrativa, já que a combustão das questões dramáticas se desenrolam inesperadamente - ao menos a quem, como eu, desconhecia a natureza da trama - após um início tradicional e empolgante. A segmentação "rashomoniana" conduz brilhantemente e com interesse a distinção dos pontos de vista, e como são esboçados servem, por exemplo, de aula para a recente dupleta nacional sobre o assassinato dos Von Richthofen, que pareceu nunca acreditar de fato nos dois pontos de vista que apresentou, o que basicamente esvazia o fator dramático de se acompanhar a narrativa. Não há peso emocionalmente manipulatório em The Last Duel, fora a própria empatia e moral do público. Deixar o ponto de vista final para a Marguerite de Jodie Comer serve justamente como um "ahá" do diretor para mostrar, aí sim uma manipulação narrativa, que, com sutilezas, evidencia o viés por trás dos interesses pessoais de cada um dos envolvidos.
É um jogo interessante, pois você começa comovido por Adam Driver e passa a repudiá-lo, enquanto Matt Damon contrai compaixão e lentamente a perde, enquanto Comer inicia com indiferença e logo toma o filme para ela. Aliás, a presença de Affleck e Damon sempre me pareceu estranha durante as promoções da fita, por suas figuras pouco associáveis ao período, e apesar de se saírem bem, a película é domada desde sempre por Adam Driver e Jodie Comer, dois dos atores mais "quentes do momento", e não seria injusto - muito pelo contrário, talvez - ver a atriz lembrada na temporada de premiações, com um olhar incrédulo e desolado de quem não encontra saída nem mesmo entre aqueles que deveriam protegê-la. Aí, novamente, o poder dos silêncios em que ela ofusca qualquer primor técnico de fundo, o que sempre é garantido pelas equipes de Scott.
Talvez o tempo faça justiça para O Último Duelo, não como um filme brilhante, mas uma pérola inesperada e contemporânea sem apelação para organizar seus comentários, sendo também competente em todos os planos que atinge. Um sopro no meio de temporadas de blockbusters cada vez mais dominadas por encapuzados e universos compartilhados, e em que a bilheteria infelizmente reflete essa predileção do espectador médio. Scott erige-se talvez como o último representante entre os grandes do gênero, e iniciando uma nova década, ele arranja uma nova forma de dignificar o papel das minorias no cinema.
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