Chainsaw Man - O filme: O Arco da Reze - Entre a Exaustão e o Delírio
Difícil encontrar uma trama mais absurda que a de Chainsaw Man: um homem que se torna um híbrido entre humano e um demônio-motosserra. A obra, inclusive, parece flertar com o choque pelo choque, dentro de um estilo “over the top” onipresente tanto em seus acontecimentos quanto no comportamento de seus personagens, chegando a soar até irritante. Debater as razões do sucesso do mangá de Tatsuki Fujimoto é uma tarefa um tanto inútil e especulativa, a não ser que se faça, de fato, uma pesquisa para tal. Se formos, entretanto, filtrar pelo grosso da fanbase brasileira, fica uma impressão negativa — muito por conta de uma infame scan lançada antes da publicação oficial, que se popularizou ao ponto de gerar críticas e linchamento digital aos responsáveis pela dublagem oficial do anime, que buscava, obviamente, fidelidade e seriedade, não o descompromisso e a descaracterização da versão de fãs.
Confesso que eu próprio não insisti muito no anime — não pela dublagem, é claro —, perdendo o interesse rapidamente após os primeiros episódios, justamente pela afetação supracitada, que suplanta, ao menos no que eu tivera visto até então, os interessantes argumentos filosóficos presentes na história de Denji.
Para minha surpresa, porém, ao dar uma nova chance à obra neste filme do arco de Reze, fui inundado por um interesse quase voraz, tanto pelos aspectos técnico-narrativos do longa quanto por sua surpreendente intertextualidade, muito mais ativa e presente do que no começo do anime — muito pelo contexto no qual o arco se insere, com um distanciamento saudável do ritmo perturbado da obra, o que para muitos é virtude, e certamente um diferencial, embora talvez não converse comigo plenamente, ainda que faça sentido dentro de um debate existencial.
Chainsaw Man, aliás, mesmo no pouco que vi de seu início, não é nada sutil em seus comentários político-sociais, nem em sua ideologia — o que torna a reinterpretação da supracitada scan brasileira ainda mais desrespeitosa e rejeitável como material primário.
Voltando ao cerne da obra: Denji, por mais desmiolado e desvinculado da realidade que possa parecer, já inicia sua “demonização” inserido em um esquema injusto que o desumaniza em prol do lucro. A dívida de outrem vale mais do que a própria existência, e, em um regime capitalista tão direto e impiedoso quanto o japonês — onde idosos são obrigados a roubar para ter um teto e alimentação, e pessoas preferem casar com travesseiros e bonecos a se relacionar e construir uma família —, pouco importa o indivíduo senão para produzir, mesmo que às custas da própria liberdade.
A demonização de Denji, assim, pode soar como uma emancipação iminente, já que ele adquire habilidades nas quais é bom, que o mundo precisa, que lhe trazem lucros e aparente felicidade — o ikigai completo —, mas não deixa de ser uma transição de controle: do submundo ilegal e hostil para a instrumentalização dentro de um órgão oficial. Troca-se apenas o agente de coerção, não a corrupção da individualidade. Denji, como outros, tem sua ideia de liberdade concedida enquanto demonstra utilidade — no que Heidegger classificaria como “reserva permanente”, negando ao ente o ser, restando apenas o estar — enquanto produzir, enquanto servir. Um conceito gestado nas revoluções industriais e intensificado em nossa sociedade performática.
É por isso que, neste esquema de controle por meio de uma liberdade simulada, garantida a Denji enquanto obediente e forte o bastante para servir aos desejos de um organismo maior — o mesmo que antes lhe negou dignidade — a primeira relação orgânica e não idealizada surge com Reze. Não falo aqui ainda de sua verdadeira função na trama, ela mesma espelho do protagonista, mas dentro de um regime soviético: igualmente mecanizado, igualmente desumanizador.
A garota, que o busca, toma iniciativa e oferece recompensas rápidas e inesperadas — causando reações divertidas, entusiasmadas e assustadas no rapaz — é o contraponto radical da fria, reservada e silenciosa Makima: um produto formulado matematicamente para servir ao desejo masculino, representado tanto por Denji quanto pelo público, oferecendo-se como uma conquista dificílima, ao mesmo tempo em que possui sua própria narrativa de persuasão e controle. Ela reconhece seu efeito, e a promessa constante, inalcançável, serve apenas para manter o “demônio-garoto” preso por um falso avanço. Ela não oferece recompensa real; ela alimenta projeções.
A chegada de Reze rompe esse espelho, oferecendo a Denji uma brecha de contato autêntico — não baseado em serventia, mas em presença. O processo é lento, cheio de condicionamentos, hormônios, imaturidades, mas genuíno em seu conflito.
Nesse ciclo existencialista de buscar a própria personalidade e destino, a tragédia central é a dificuldade — para não dizer impossibilidade — de encontrar uma conexão não artificial dentro de um sistema já tão mecanizado a ponto de convencer todos de que não existe outro caminho além da subsistência total do id ao ego.
Não sei ainda o final desta história — se é que existe. No mundo real, parece cada vez mais inatingível o sonho da individuação, já que tudo e todos parecem nos isolar de nossa própria psique, revertendo o sentido e o propósito da vida a um ponto em que a felicidade, mesmo quando palpável, nos escapa e reinicia o jogo, eternamente na busca do inexistente. Da ilusão. Como se tudo fosse um delírio.
Bom texto. Pegasse muito bem uma dos aspectos que faz Chainsaw Man ser uma obra tão interessante pra mim, que de fato, é a forma exploratória que não apenas o Denji, mas praticamente todos os membros da segurança pública são tratados. O Fujimoto sempre manda umas indiretas em relação a isso, como a medrosa Kobeni se forçar a trabalhar em um trabalho como este por falta de opção, como neste filme, o Anjo demônio insistir em falar que ele prefere morrer do que trabalhar, que para alguém em tese, imortal, seria uma espécie de inferno.
ResponderExcluirMas existe também outros aspectos interessantes sobre a guerra, visto que o demônio mais forte do universo de Chainsaw Man, surgiu devido ao armamentismo ter se tornado tão extremo que as armas se tornou o objeto mais temido ao ponto de criar um demônio quase indestrutível. E na própria questão do Denji, que além de tudo que falasse, tem um outro elemento que faz ele ser um tanto incompreendido, com muita gente resumindo ele a apenas um pervertido, sendo que ele acima de tudo, é um personagem bem carente que anseia por amor, mas que devido a situação que ele se encontra por ser um demônio, é sempre negado. Tanto que há certas cenas com um teor mais sexual que demonstra a sua insatisfação por uma relação apenas carnal. Um personagem muito mais interessante do que dão mérito, ao meu ver.
Em geral, este filme cumpriu tudo o que eu esperava. A estética usada aqui foi muito mais psicodélica e um tanto experimental do que o filme, que pra mim, foi um baita acerto. As cenas de ação foram realmente ambiciosas e eletrizantes ao ponto de mexer com os seus sentidos, ao invés das lutas mecânicas e formuláicas do filme de Kimetsu por exemplo. E toda esta questão da Reze, que desencadeiou em um final bem trágico, mas um tanto poético pra personagem. Com certeza, estarei na expectativa pra ver como será o restante da adaptação.