Avatar: Fogo e Cinzas (2025) - Crítica
Enquanto esboçava o universo de O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien pensava sobre como gostaria de dar à Inglaterra uma mitologia própria, para chamar de sua. De certa forma, sem fazer comparações qualitativas aqui entre as obras, é o que James Cameron fez com a Pandora de Avatar. Foi com George Lucas e seu Star Wars, e agora Cameron. E nem mesmo Lucas comandou, dedo a dedo, sua criação com tanto amor próprio e domínio. Em escala, orçamento e alcance, é uma comparação improvável. O cineasta entregou os últimos 20 anos de sua carreira a esta idealização. Entretanto, seus alicerces vêm de cerca de cinco décadas, quando o diretor ainda era um jovem sonhador.
À espera da tecnologia perfeita, ainda que sem marcar a cultura pop com um merchandising notável, Avatar se tornou onipresente no imaginário popular, mesmo que seja para se criticar. Muito se diz sobre o quão básicos ou ruins seriam os roteiros e personagens, calcados somente num trabalho visual revolucionário. Não há discussão quanto ao destaque do que move Pandora: seu inigualável trabalho técnico. Cameron, um artesão, mas também um tecnocrata, vai a fundo em cada etapa para fazer não somente um mundo crível e consistente, não sendo apenas uma pirotecnia exibitória, mas para saber como entregar isso fielmente ao público em busca do maior espetáculo — até como evitar dores de cabeça. O 3D foi criado e, basicamente, hoje só existe para servir a Avatar. O resto é extorsão.
Eu confesso que, nos dois primeiros episódios dessa saga, me maravilhei muito, mas foi um envolvimento majoritariamente frio, especialmente no segundo capítulo, O Caminho da Água. É um espanto visual que vai lhe conduzindo por entre tramas repetitivas e por vezes enfadonhas, permeadas por criaturas tão densas e notórias, além de cenas de ação de um diretor mestre do gênero, que você acaba sentindo algo, afinal. É uma relação que se resumia a: se continuarem fazendo, perfeito, seguirei assistindo; mas se pararem, não me importaria muito.
Isso era até conferir Fire and Ash, o final da trilogia inicial concebida por Cameron (que, pela indecisão do futuro da franquia, tão dependente de bilheterias hercúleas devido a seu orçamento generoso, afirmou que este filme encerra uma saga e, caso não retorne à Pandora, serve como uma conclusão). Em meio a acusações de reciclar temáticas e plots, muito do público parece esnobar e ignorar os grandes méritos narrativos de Cameron, tecnológicos e artísticos, em meio a uma indústria blockbuster que definha.
Cameron parece como uma versão com esteroides do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo, que vive numa jornada da marmota em que repete, com constância, o mesmo esqueleto em seus filmes, em busca de algo que somente ele sabe — talvez o mais próximo da perfeição? Mas seria injusto relegar o universo de Pandora a essa alcunha, como se fosse tão somente um showroom visual. Os filmes de Avatar, mesmo que imaginados há meio século, funcionam como um reflexo temporal muito acima de uma ideia pré-estabelecida e imutável, como um espelho global de sua história cíclica.
Não é pelo debate ecológico, mais forte no primeiro episódio, já trazendo críticas por sua similaridade com o Studio Ghibli, ou tampouco vai ser pela pletora de meditações que o diretor traz conforme avança na história iniciada lá em 2009. Pouco se traz de novo na semiótica audiovisual contemporânea, e de boas intenções não se mantém a arte. Cameron, entretanto, acima de qualquer ética, sempre foi movido por uma fome revolucionária para contar suas histórias, e por isso o comparo a Tolkien. Ele parece mais interessado nas ferramentas que na obra, mas engana-se quem pensa nisso como uma desvantagem. Para aflorar sua criação, despeja todo o esforço e dedicação em narrar um conto permeado pelo que se desenvolveu.
Nesta reverberação entre real e fictício, Fogo e Cinzas é o longa mais cínico e pessimista da franquia. Sem salto temporal, inicia nas rabeiras de uma guerra que levou a tantas mortes, inclusive a do filho do casal protagonista. Com uma narração que reforça seus ares de fábula folclórica, Avatar 3 se apresenta em luto e amargura incapazes de se sentir e, logo, superar. Pois o mundo não permite, em constante movimento e violência. Neytiri, com pinturas do pesar, representa a indignação e revolta contra essa incessante necessidade de se defender, canalizando-a em uma fúria audível e selvagem, permitindo a Zoe Saldana brilhar como nunca no âmago da Na’vi. É um bom contraste com a frieza e deslocamento do Jake de Sam Worthington, que, por mais que tente, nunca deixará de ser um humano. Entretanto, esse distanciamento que cria ranhuras em sua família se mostra a única saída em um mundo em irrefereável ameaça e guerra. A mácula humana já foi deixada em Pandora. E não se apagará.
Cameron comentou sobre como a aniquilação é um argumento bastante válido para contra-atacar, citando os exemplos atuais e óbvios de Gaza e Ucrânia. Mais do que nunca, os dogmas religiosos são postos em discussão em sua fragilidade prática. Uma fé incontestável e pacífica contra um agressor impiedoso e tido como profano, tanto nas figuras humanas do “povo do céu” quanto da nova tribo ateia, liderada por Varang, incendiária e magnética na composição de Oona Chaplin, neta do lendário ator. Uma antagonista que leva a cabo a questão dostoievskiana de que, se Deus não existe, tudo é permitido?
Porém, sobre esse tema, não concordo em ler a situação como o maniqueísmo cristão de fé e paganismo, apesar de uma representação convencional de um coletivo tido como “bruxo” agindo com selvageria, insanidade e desrespeito. Afinal, a fé dos Na’vi sempre me pareceu mais uma aproximação da espiritualidade xintoísta do que de um conservadorismo abraâmico, responsável por tanto preconceito e, consequentemente, extremismos e violência. O próprio Cameron sendo um declarado ateu confirma isso.
Num debate mais inocente, porém ubíquo, sobre solidariedade e como devemos adaptar nossas crenças sem trair nossas convicções em tempos de crise, Cameron não é nada sutil, apesar de por vezes superficial, em suas afirmações, se é que há uma fora o direito de defesa, seja ele como for. Sendo os temas de beligerância, colonização e destruição repetitivos, resta ao diretor usar do contemporâneo e da história para ajustar seus pontos. Mais do que nunca, o que se vê é uma fagulha de esperança mitigada por uma constante autodestruição e a inevitável caminhada ao fascismo que observamos na última década.
Cameron sabe que faz, entretanto, cinema e não um livro de filosofia. E cinema caro. Belo, mas oneroso, que precisa de muitas centenas de milhões para se justificar. A união entre discurso e visual é, nestes termos, a mais caótica e frenética da trilogia, em incessante progressão. Como supracitado, destacando uma realidade indiferente ao luto e à dor, obrigando os personagens a escolher entre a obliteração face à empatia ou a adaptação, por mais insuportável que seja.
O diretor mescla a trama entre passagens que desenvolvem e aprofundam as interações entre os personagens, dedicando grande tempo ao núcleo jovem do elenco, talvez antevendo uma troca de protagonismo nos próximos longas, e pura desordem. É uma ferocidade em novo ritmo e escala, algo impressionante e que, mais do que nunca, relembra ao mundo quem é James Cameron como contador de histórias e deixem de o subestimar como artista.
Em seu clímax apoteótico, Avatar é uma experiência primitiva dentro e fora da tela. É a sobrevivência desesperada. E, assim como suas figuras são golpeadas, caem, levantam, voam e mergulham, me vi em combustão, numa adrenalina que me impelia a levantar, correr, pular e gritar pela sala. Algo que não lembro de ter sentido desde o inigualável O Retorno do Rei, para novamente mencionar Tolkien. Você pode fazer muitas leituras das camadas de Avatar e, mesmo assim, se não quiser, funciona como uma aventura cinemática de primeiro nível.
O cinema blockbuster americano murcha. Acumula fracassos financeiros e, sobretudo, criativos. Estúdios amordaçam grandes mentes em obras anêmicas, descoloridas, previsíveis e robóticas. Cameron, mesmo com condescendência e tantos defeitos, ainda é um autor. E dos bons. Orgulhoso, determinado, visionário e apaixonado. E tudo isso vemos em tela aqui, neste incendiário retorno à Pandora. Sempre, sempre vale a pena parar para ver o que alguém assim tem a dizer. Ou mostrar.
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