Pantera Negra (2018) - Crítica


A temática social de um filme deve sobrepor seus atributos técnicos em uma análise crítica? Não. As boas intenções não nos devem fazer virar a cara para, por exemplo, o melodrama condescendente de longas como Histórias Cruzadas e Um Estado de Liberdade. De outro lado, quando bem trabalhados, os aspectos sociais e políticos impulsionam debates através do audiovisual, o transformando em tudo, menos uma experiência passiva, como Faça a Coisa Certa, Selma e 12 Anos de Escravidão.

Entre resultados instáveis e primorosos, é papel da sétima arte - como de qualquer expressão artística - espelhar a visão de seu responsável sobre o que lhe apetecer. Em tempos de revolução que vivemos, nem blockbusters escapam disto, o que é sensacional visto seu apelo e visibilidade. E se ano passado foi a vez das mulheres invadirem um terreno até então dominado por homens, desta vez são os negros que interrompem a festa branca. Pantera Negra fora criado, nos quadrinhos, em um ambiente conturbado em busca de representatividade. Agora, mais de 50 anos depois, é a vez do herói receber sua adaptação solo em meio ao bilionário universo Marvel, para dar voz a mais uma classe que clama por seu espaço em uma época onde a repressão não é mais tolerável. E felizmente, seus méritos estão longe de se aterem ao simbolismo racial. Acima de tudo, Pantera Negra é cinema de boa qualidade, e um acréscimo valioso ao time audiovisual da casa das ideias.

Já apresentado na meticulosamente orquestrada franquia, Pantera Negra inicia após a morte de T'Chaka, monarca de Wakanda, em Guerra Civil (com um rápido flashback que serve de alicerce para as relações motivadoras dos conflitos que movem a trama), um país considerado de 3º mundo e ignorado na ONU (em certo momento, a nação é julgada como um povoado de fazendeiros sem grande utilidade), mas que na verdade possui grande riqueza oriunda da enorme quantidade de Vibranium (material que forma o escudo do Capitão América), o metal mais valioso da terra, em seu terreno. Destarte, o reino passará a T'Challa (Chadwick Boseman), que deverá lidar com uma grande ameaça a seu posto, assim como a postura de seu reino com o restante do globo.


Uma passagem de trono, uma transição geracional de poder. Não é em vão que este é o ponto de partida para conhecermos o Pantera Negra. Pois como dito nos dois primeiros parágrafos, nós vivemos mudanças demoradas, lentas, mas progressivas, de quebras de paradigmas sociais. Nesta metáfora, a forma como seu pai reinava pode não ser o mais adequado aos novos tempos. Consequentemente, temos a desconstrução nostálgica e perfeita que cerca nossos patriarcas. T'Challa descobre mais sobre o passado de seu pai; o véu da imaculidade se esvai conforme ele percebe a dormência egoísta em que Wakanda se esconde e progride isolada, enquanto os arredores queimam em caos. Principalmente, é claro, no próprio continente qual se encontram.

Estas propostas renovadoras poderiam ser um empecilho à conservadora Marvel, que necessita de aceitação massiva para lucrar com seu investimento de centenas de milhões, e é um alento que Kevin Feige não fique inerte e indolente aos movimentos de igualdade que sacodem a indústria. A tomada de bastão por T'Challa é a alavanca que inflama a indignação com a estagnação e ruína. Mas mesmo que tratemos de ficção, buscar justiça e aceitação não é um caminho fácil ao povo desvalorizado.

Nesta equação, é incrível que o nêmesis de T'Challa não seja um caucasiano megalomaníaco tratado com maniqueismo, mas sim um igual, porém vítima de circunstâncias extremamente diferentes, distante das benesses utópicas da tradicional Wakanda. É Erik Killmonger (Michael B. Jordan, em sua 3ª parceria com o cineasta Ryan Coogler), também um negro, mas criado em Oakland, onde sua cor não é o padrão, mas sim a exceção, fruto dos fervorosos anos 90, crescido em condições tão comuns quanto infelizes, sem o pai, sem uma muleta moral, tendo um caminho incontornável ao radicalismo, exposto a um regime desigual e segmentado, cuja personalidade certamente foi afetada pelos protestos de Los Angeles, após o espancamento de Rodney King, mais um negro tratado de modo brutal pela polícia local, tendo como único crime sua tez.

Ainda que possua ligação direta com os subúrbios de Peter Parker ou as extravagantes regalias de outros Vingadores, Pantera Negra lida com questões diferentes, e tal qual seu país, precisa primeiro resolvê-los antes de enfrentar o mundo sendo quem é, não mais camuflado. O embate entre T'Challa e Erik é, portanto, mais que uma batalha de força, mas um conflito de ideias e personalidade. Entre um homem criado para ser rei contra outro amadurecido em meio à miséria, sozinho, deposto de suas raízes. Os diálogos entre ambos são imediatos em nos lembrar Malcolm X e Martin Luther King; tão iguais, porém tão diferentes. Um reminiscência já utilizada em outra saga criada por Lee, os X-Men, obra que também encontra endosso em pretextos políticos: X e King são personificados através de Magneto e Professor X.

Se é que pode ser chamado de vilão, Erik assume o posto de melhor antagonista de todos já vistos em fitas Marvel. Seu charme e carisma se aproximam ao de Loki, mas ao contrário deste, sua humanização é dolorosa e tátil, nos convence em seu rancor e possui argumentos em sua defesa, por mais severa que esta possa parecer. Jordan transmite todas estas nuances, assim como a imponência física do personagem, como uma grossa casca de proteção.


É trabalho, então, de T'Challa e seus companheiros, menos convencer o já fragmentado Erik, e mais o público, que extermínio e o ódio não são os caminhos corretos para buscar pacificação e melhoras nas condições de vida para todos seus semelhantes. Isto seria, é claro, apenas substituir o papel colonial e ditatorial de tantos homens brancos que passaram pelo continente africano e levaram a uma cadeia de discriminação que perdura até hoje. A escolha não está na dominação, e sim na reconciliação. Minimamente, é papel de Everett Ross (Martin Freeman) servir de lembrete que a demonização não seria cabível, pois há sempre espaço ao diálogo.

Ryan Clooger, que trouxe vários de seus parceiros ao projeto para torná-lo mais pessoal e menos pasteurizado, assume assim uma postura diferente da que nos acostumamos a ver com Spike Lee, sempre tão rígido e agressivo em suas mensagens. A Marvel nunca aceitaria o que Lee propaga, e nem parece ser o pensamento de Clooger, que faz questão de destacar e se orgulhar de hábitos e características étnicas negras sem desmerecer qualquer outro ethos. É clara a referência de tribos africadas nas vestimentas e rituais dos Wakanianos, a despeito de sua tecnologia de ponta. O respeito ao passado conserva sua cultura e os mantêm alerta ao futuro sem abandonar as origens.

Esta veneração também está presente na trilha sonora, tanto a incidenal quanto a cantada. A primeira, trabalho de Ludwig Göransson, calcada em vocabulários e instrumentos típicos remete a outras da mesma linha, como em Rei Leão e Lágrimas do Sol, enquanto Kendrick Lamar, um dos maiores representantes da música negra contemporânea, assume os versos mais Pops, sempre etnicamente nítidos, entoados fluidamente com letras fortes e potentes.

Talvez o único defeito claro de sua direção esteja no que, talvez, o telespectador mais pedestre espere ao adentar o cinema e gastar uma quantia valorosa no ingresso: a ação. Inexperiente no aspecto, Clooger por vezes adota as desprezíveis técnicas de esconder para fantasiar uma complexidade inexistente na coreografia; quando o problema não é pior, como o CGI exagerado nos movimentos de quanto o traje está vestido. O escuro, nestas ocasiões, parece menos artifício atmosférico ao espírito do Pantera, e mais como método de esconder golpes e contragolpes fracos. É um elemento relevante e que pode afastar quem aguarda espetáculo, mas nada que a Marvel não tenha entregado antes - e se continua sua ascensão popular, tem funcionado.

Orçado em 200 milhões, a estimativa de retorno prevê recordes. É um marco na história do cinema, assim como fora Mulher-Maravilha, em 2017. Uma prova de que produtores e executivos não precisam mais se resguardar em descendentes europeus para estampar cartazes milionários. Uma prova de que os movimentos sociais que fazem Hollywood ferver não são injustificáveis ou invalidados. O público esta disposto a consumir. O que importa, afinal, é seu esmero.

E isto nunca foi, nem será, mérito de cor, sexo ou religião.

Nota 8.

Um comentário:

  1. Eu concordo com você sobre Erik Killmonger. Eu acho que seu papel como vilão foi muito bom. Michael B. Jordan é um ator muito talentoso. Sem dúvida, vou segui-lo de perto em seu novo projeto. Na minha opinião, Fahrenheit 451 será um dos melhores hbo filmes de este ano. O ritmo do livro é é bom e consegue nos prender desde o princípio. O filme vai superar minhas expectativas. Além, acho que a sua participação neste filme realmente vai ajudar ao desenvolvimento da história.

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