A Grandiosidade Minimalista de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel e o Mal da Megalomania no Cinema Blockbuster
Gosto bastante da primeira frase da crítica de Pablo Villaça sobre este filme, que por muito tempo foi slogan do site e deixaria Gandalf orgulhoso: "Às vezes, 5 estrelas não são o bastante". Acho que é uma definição perfeita sobre a Sociedade do Anel, o primeiro e melhor espécime não somente da trilogia, como de todo o cinema de fantasia.
No imaginário cultural, imagino, O Retorno do Rei se estabeleceu como o epítome da trilogia. No imdb, é a maior nota dos três filmes, com um décimo acima de Sociedade, e dois sobre Duas Torres. No entanto, percebo, há uma boa comunidade de fãs por aí que, assim como eu, apesar da saga ser uma obra-prima justamente por sua consistência e equilíbrio, relegam ao começo de tudo como o mais brilhante pedaço da obra.
Em sua época, é mais fácil traçar os caminhos que levaram o Retorno a se tornar o mais laureado filme da história do Oscar, o que alimenta bastante desta percepção enlevada. O encerrar de uma trilogia que se mostrou sensacional e mudou o cinema, um arrombo cultural jamais visto antes, cativando o público para receitas estratosféricas, então atrás somente de Titanic na lista das maiores bilheterias. Cheio de ação e momentos catárticos, se beneficiou do envolvimento emocional que já possuíamos até então com aquele universo, de modo que ao rolarem os créditos, não era mais um até logo, e sim um adeus. Logo, era essencial, obrigatório e primordial que se fosse feita justiça ao trabalho de Peter Jackson, erigindo-o no mais alto pedestal do glamour cinematográfico, que passaram batidos por Duas Torres e Sociedade, ainda que suas alternativas sejam, discutivelmente, ainda mais frágeis que a concorrência do Retorno.
Nada comove como uma despedida, porém, e a certeza de que ali nos despedíamos de Frodo e toda Sociedade, são imediatamente mais marcantes e propulsores de emoção. Não julgo quem prefere o Retorno nem busco desmerecer a obra, a que amo. Somente contextualizar uma impressão para justificar, então, uma talvez sugestão de revisitarem A Sociedade, pois é esta a Pedra Arken da trilogia.
Há algo em A Sociedade que não se vê nem no restante da obra, muito menos em outros produtos de gênero. É, em partes, um privilégio propiciado somente a inícios. O encantamento do olhar inédito. Mesmo quem fora familiarizado com os textos de Tolkien não deixou de se maravilhar com a recriação visual e narrativa do projeto de Jackson e a extasiante equipe técnica. O Retorno não é somente do Rei, mas de tudo aquilo que fora já apresentado. Os Hobbits, Aragorn, Gandalf, o tom dramático da unidade estilística da obra, bem como sua trilha sonora, tudo como um fulgor de novidade que impressiona mais do que qualquer revisita. Mas somente isso engrandeceria apenas a primeira experiência com uma obra, visto que qualquer assistida posterior perderia o fator da originalidade específica. O que sustenta, garante e reforça a magistralidade de Sociedade nestes quase 20 anos de sua estreia, está na junção dos elementos que compõem o filme, e em como eles se destacam em relação a suas sequências.
Quando entramos na Terra-Média, sabemos mais que Frodo, sabemos mais que Bilbo e até que Gandalf, que só descobre durante a trama a origem do anel do Hobbit. De modo que seu frescor e tranquilidade já são falsos e temporários, prevemos. Isolados do mundo, impedidos de ver e nos oferecendo seu olhar àquela era, é impossível perceber de prontidão, mas a época em que se inicia a Guerra do Anel, durante a Terceira Era da Terra-Média, é a de decadência e que antevem um fim. Poucos são os Elfos que permanecem no Continente, em constante migração às terras imortais; os grandes reinos dos anões estão em ruínas e, como diz Ganfalf, é nos homens que reside a esperança. Só que naquele exato momento, os homens não eram nada senão o que nós somos, um bando de desajustados, manipuláveis e venais a nós mesmos. A própria história dos Númenorianos se encontra com a dissipação causada por vaidade, arrogância e simples e plena imbecilidade ao serem influenciados por ninguém menos que Sauron. Talvez seja complicado de entender com complexidade a quem desconhece o Silmarillion, mas Jackson colocou de forma rápida no roteiro da trilogia, no primeiro filme, principalmente no combate silencioso entre Boromir e Aragorn, o filho do regente de Gondor, o reino dos homens e sem Rei, e o herdeiro da coroa, mas receoso e inseguro em assumir a posição após uma vida de fuga a qual só descobriu sua origem quando já apresentava dois dígitos na idade.
O trabalho da Sociedade, então, é introdutório, maravilhosamente orquestrado enquanto equilibra este fardo com a necessidade de se manter interessante em meio ao didatismo. Fora o fator metafórico e semiótico do "até mesmo a mais pequena das criaturas pode mudar o mundo", é por isto que os Hobbits são protagonistas, pois eles são uns iludidos e alienados da realidade, a grande maioria somente ciente da existência de coisas como elfos e anões, muito pelo próprio Bilbo, mas sem nenhuma experiência prática - nem desejo disso. É o mote perfeito da jornada do herói, a partir de um ignorante que nada sabe, e a quem tudo é novidade. Nós somos Frodo nesta história, pelo menos no ponto inicial de tudo, antes das histórias dele e Sam bifurcarem com o do restante da Sociedade.
A minha maior paixão em relação ao filme está na sua escala. Escala é uma palavra que me incomoda muito. "The bigger the better" é uma frase que odeio e que muito pouco condiz com a realidade, mas infelizmente uma regra nada discreta do mundo dos blockbusters, cada vez mais acentuada no cinema contemporâneo, mas já visível em séries anteriores a este milênio, como De Volta Para o Futuro, Duro de Matar, Um Tira da Pesada, etc etc (não se encontram exemplares épicos de grandiosidade similar justamente pelo papel embrionário da saga do anel em mostrar aos estúdios a tremenda oportunidade de lucros que o gênero é). Esta crença de que se algo faz sucesso, a continuação só será boa se ampliar as consequências, não presta. Não preciso pensar muito pra achar como isso tem arruinado muitas franquias, como Jurassic Park, Os Vingadores, o próprio Hobbit, já vítima de um zeitgeist que o desfigurou ao tentar emular a trilogia original numa realidade já intransponível. Megalomania nunca é o caminho, e superlativo algo a ser negado.
Pois ainda que os perigos enfrentados em Sociedade do Anel já ameaçam o futuro de Arda em caso de morte de Frodo ou posse do anel pelos Nazgul ou as tropas de Saruman, a escala da ação se entremeia melhor entre o equilíbrio da jornada, em grande essência um road movie by feet, do que nos capítulos seguintes, que em grande parte avançam de perigo em perigo, cada vez mais aterrorizantes, intensos e apocalípticos. Os temores em Senhor dos Anéis, mesmo que sempre episódicos, são mais pontuais e ressaltam a natureza mais íntima e reflexiva do filme, o que resgata, por isso, melhor a natureza abstrata e vaga das escrituras de Tolkien, que são pouco acomodadas num nicho de ação, principal reprimenda de seu filho e cuidador da obra durante as últimas décadas, Christopher Tolkien, que condena a trilogia como filmes de ação para o público juvenil. Não, eu não concordo com as palavras de Christopher, mas levando em conta a paixão pelas paisagens e descrições e o tom mais cândido e bucólico da obra Tolkieniana, diria que A Sociedade é o mais fiel ao resgatar este espírito, e mesmo nos livros, é o primeiro capítulo que apresenta melhor estas características, até pela natural escalada de desgraças que se seguem.
Mesmo o clímax da obra, a batalha mais sangrenta e fatal, já contra servos de Saruman, e por isto a serviço de Mordor, é menos grandiosa, e não por isso menos épica, que os confrontos do Abismo de Helm e nos Campos de Pelennor. Ela se concentra numa floresta, entre poucos indivíduos à pé, num labirinto de árvores. É mais estratégica e dedálica do que o campo aberto natural de embates entre exércitos. É tudo mais pessoal, e por ser mais pessoal, mais sentido, o medo pela vida dos personagens e até o foco da ação, obviamente menos dependente de efeitos especiais. Mesmo tecnicamente há este benefício, o que naturaliza o evento, o deixando concreto. O ponto negativo, claro, é a falta de um discurso desses, risos.
Você sai de filmes como Duas Torres e Retorno do Rei querendo montar num cavalo e sair bradando uma espada e discursando pelos asfaltos da cidade, mas Sociedade do Anel possui aquela alma mais verdejante que talvez precise de mais tempo e maturidade para ser bem contemplada. Todos os três filmes são muito emotivos, mas nenhum é tão contemplativo como a Sociedade, algo ressaltado pela própria trilha de Howard Shore, que apresenta temas mais simplórios e melancólicos na Sociedade, como Breaking of the Fellowship e os temas de deslumbramento em Valfenda e Lothlórien, pra mim a melhor trilha sonora já feita na sétima arte. São detalhes que trazem o minimalismo em meio à enormidade dramática que é O Senhor dos Anéis, um convite ao pensamento que enobrece ainda mais os momentos de ação justamente por ter nos permitido passagens de mais calmaria que exibem a beleza daqueles personagens e locais, e não somente a ruína humana e a malevolência de Sauron e seus vassalos.
No fim, é tudo uma questão de gosto. Mas a mim, é isso que o difere e destaca aos outros dois, ressalto, também excepcionais longas.
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