Harry Potter e o Cálice de Fogo (2005) - Crítica


A crítica a seguir faz parte do projeto dedicado a escrever sobre todos os filmes da série como se vistos à época do lançamento, pela primeira vez. 

Harry Potter e o Cálice de Fogo.

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Maior livro da série até então, que vem numa crescente exponencial, poderia-se imaginar que Cálice de Fogo deveria render uma farta análise. Mas não. Curiosamente, é o capítulo da franquia que mais me dificultou em iniciar o texto, que menos estimulou ideias acerca do que escrever. Isto se deve, reflito agora, não numa superficialidade ou verborragia de seu material, ainda vastamente criativo, interessante e instigante, mas sim nas escolhas narrativas, que ao contrário de Prisioneiro de Azkaban, o melhor da franquia até aqui, privilegiam mais os acontecimentos do que o desenvolvimento pessoal dos personagens, e isto vem com seus bônus e ônus. 

Robbie Coltrane, que vive Hagrid, disse em uma entrevista como seria possível dividir a série em duas partes: os quatro primeiros filmes quase como aventuras anuais, enquanto os livros e filmes restantes como uma continuidade. Porém, apesar de sua estrutura por vezes segmentada, seria injusto taxar os filmes como fases de games, já que, ainda que primeiramente vários elementos eram mais imediatos e os perigos realmente obstáculos temporários, serviram para sugerir e introduzir as características que iriam atingir um ápice nos capítulos subsequentes, e a margem da virada se dá justamente em Cálice de Fogo, que marca o retorno definitivo das forças das Trevas. 

Porém, é justamente essa carga que acaba sugando boa parte da trama da construção dos personagens, que cada vez assumem mais os pesos do amadurecimento em uma era de crescente perigo, nas idades mais conflituosas e formativas de suas vidas. As escolhas narrativas que acabam sendo optadas para inserir todas as novas inserções e suas relações no mundo mágico já conhecido sacrificam partes das psiques dos jovens protagonistas, justamente um dos fatores que tornou Prisioneiro tão fascinante, já que jamais o passado se entrelaçou tanto no desenvolvimento deles, e essa união entre história e psicologia foi um dos principais motivos de sua excelência. 


Mas como eu comentei, são ônus e bônus. A Warner considerou até realizar dois filmes por um tempo durante a pré-produção, mas Mike Newell concluiu que conseguiria atar todas as tramas numa só fita (ainda que ela beire os 180 minutos), e isto garantiu um ritmo incessante, que acaba deixando menos tempo para pensar que os episódios anteriores. E o principal mérito de Newell e o roteiro de Steven Kloves é como esse ritmo consegue balancear a enxurrada de acontecimentos sem soarem sobrecarregados ou exagerados, ainda que, novamente, fique no ar a dúvida se duas produções distintas iriam deixar as experiências mais massantes, ou render dois grandes filmes que abocanhassem mais completamente o livro de Rowling. Dúvida cruel, é mais saudável se ater no que temos, que sim, é um grande longa. 

Ainda que um mundo não seja nada se não nos importarmos com seus personagens e a história contada, é simplesmente fascinante como, após todos esses anos, as criações de Rowling não cansem de nos maravilhar em sua invencionice e lógica conceitual. Recriado perfeitamente em tela, o universo segue em expansão quando conhecemos duas novas escolas, Durmstrang, possivelmente situada na Noruega, e Beauxbatons, com toda a pompa e requinte oriundos da França (um estereótipo inglês, talvez), uma tríade secular europeia que compõe o perigoso Torneio Tribruxo, que conduzirá o andamento da história em diante. 

Uma ilustração das mudanças ocorridas neste quarto ano estão logo no começo do filme, em que pela primeira vez não somos levados a Harry, e sim numa casa sombria e desconhecida, em que presenciamos uma conversa entre Rabicho, um enfraquecido Voldemort e outro bruxo obscuro, planejando o retorno daquele que não deve ser nomeado. O foco e o ponto de vista seguem estando no garoto, mas dessa vez o perigo não é somente circunstancial, e sim premente e mais sério do que nunca. 

Mas, novamente, por mais fascinante que seja ver dragões, finalmente mergulhar no lago negro e assistir à Copa Mundial de Quadribol, é através das figuras que circulam por este espaço, que enfrentam a periculosidade constante, que tudo se torna uma experiência envolvente ao invés de um álbum de figurinhas. 

É por isso que por mais que adoremos conhecer novas escolas, a Beauxbatons de Fleur soa menos interessante justamente pelo desperdício narrativo que é a garota, que seria uma oportunidade perfeita para discutir feminismo, mas parece só reforçar estigmas prejudiciais e negativos, como o esnobismo e a fragilidade da bruxa. Já Krum fica mais marcante justamente por sua presença mais próxima, sua intimidade pueril com Hermione, enquanto esta descobre a própria vaidade e gostos, e a divertida adoração de Rony pelo personagem, um exímio apanhador de Quadribol Profissional. 


A introdução dos dois campeões estrangeiros não aplaca nem substitui a maior perda emocional da trama, que está na baixa presença dos sidekicks de Harry, Rony e Hermione, que perdem bastante tempo em tela devido ao foco no Torneio, principalmente o ruivo, já que passa parte do segundo ato brigado com o amigo. Enquanto Hermione se desgruda um pouco da órbita de Harry ao explorar a própria feminilidade (nos livros a sua falta de encanto e aparente rudeza é mais ressaltada por comentários de colegas) e arranhar um ciúmes tóxico de Rony para um sentimento em negação, o Weasley perde força sem espaço para seu alívio cômico. Isto, todavia, dá tempo em tela para Neville, que finalmente mostra alguma utilidade fora ser o desastre das classes, e considerando o papel capital do grifinoriano no futuro, é necessário que se conheça melhor o rapaz. 

Em contrapartida, os acréscimos pessoais devidamente úteis são Alastor Moody, no que parece ser uma categoria anual de escolher um renomado ator britânico para personificar um sujeito excêntrico e magnético, desta vez a cargo de Brendam Gleeson como um bruxo parrudo, carrancudo e rabugento, e simpático justamente por isto. Já Robert Pattinson se encarrega do outro campeão de Hogwarts, Cedrico Diggory, finalmente jogando alguma luz em uma casa que não a díade Grifinória-Sonserina. Com o pouco tempo em tela, o ator revela bastante carisma e honestidade para representar as virtudes da casa da Lufa-Lufa e nos fazer afeiçoar ao jovem, o que é plenamente essencial pelas consequências trazidas pelo filme. 

Tudo, no entanto, é um ensaio, por vezes divertido, emergente ou apaixonante, para o grand finale, o momento prenunciado e aguardado desde que vimos a Cicatriz de Harry em Pedra Filosofal, que é o regresso de Lord Voldemort, interpretado com extremo sadismo, perfidez e veneno por um Ralph Fiennes vivendo o tempo de sua vida, finalmente personificando o mal puro do vilão, que exala sua desumanidade através de cada gesto, sorriso malicioso e, é claro, o design espectral. 


Se não provoca tantas emoções e explora tão bem a mente de seus personagens quanto seu antecessor, Cálice de Fogo não deixe de impressionar e entreter, tendo a pesada responsabilidade de nos apresentar ao Lorde das Trevas, tarefa superada com êxito, deixando no ar o caminho livre, então, para todas as reverberações psicológicas e físicas que seu retorno deflagra. 

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