Soul (2020) - Crítica

Eu não costumo ler críticas antes de escrever as minhas. Isso por dois fatores principais; primeiramente, para não influenciar minhas impressões antes de tecer meu texto, já que desta forma, ele seria uma espécie de plágio; em segundo, evitar que um texto muito bom ou completo tire minha autoestima e esvazie a inspiração. Veja bem, eu adoro ler críticas de outros, para aprender mais, me informar e entender coisas que possam ter passado despercebidas. Mas normalmente, depois de já ter lançado minhas palavras sobre a obra. Devido a minha personalidade, entretanto, o segundo critério costuma fazer parte constante quando leio sobre algo, planejando eu escrever ou não, que é se sentir inferior, e ser exposto tão frontalmente a alguém, ou vários alguéns, que são melhores, até bem melhores, no que você se acha bom. Por isso que é essencial que eu só procure a opinião de outros após já ter expresso a minha, caso contrário, é frequente que me frustre, sem jamais tirar as ideias da cabeça. 

Pois bem, ao cadastrar Soul no Letterboxd, cometi um erro. A maioria dos comentários tende a ser inofensivo, piadas, ou argumentos curtos. Mas acabei topando com uma crítica extensa de alguém, e fui fisgado por ela até o fim. Foi um texto fenomenal, cheio de impressões que deixei passar, ou visões diferentes das que tive. A reação foi imediata: eu não conseguiria redigir algo assim. Do que vale eu fazer uma crítica, então, se alguém já fez superior? Isso considerando as centenas que nem botei os olhos. É uma sensação horrível a de se sentir ruim no que tu faz melhor; a constatação da insignificância.

Eu normalmente deixaria o texto de lado, mas aí eu me toquei que ei, Soul é, em partes, sobre isso. Esse medo do fracasso que todos temos, e muitas vezes nos amarra e interrompe de praticar algo que nos faz feliz, mesmo não sendo referência nisto. É mais sobre a experiência do que a vitória. A vida adulta traz pressões, responsabilidades e decepções que costumam rejeitar as lições de filmes infantis, mas que péssimo crítico seria eu, que ainda considero animações como meu estilo favorito de cinema, ao cometer o tão imaturo e equivocado erro de considerar qualquer animação como algo próprio para crianças. É uma opinião comum de pais leigos à sétima arte, mas não de alguém que se dedica a isso.

O grande charme da Pixar nestas quase três décadas de estrada é justamente o esmero em equilibrar a moralidade intrínseca na arte com um desenvolvimento que transcende o nicho. E talvez, ninguém faça isso melhor no estúdio que Pete Docter, um dos diretores e roteiristas do filme, também idealizador da história, e agora diretor criativo da casa. Pete viveu, por anos, à sombra de Lasseter e Andrew Stanton, mas enquanto ambos naufragaram em escolhas profissionais ou atitudes pessoais, o tempo trouxe a convicção da relevância e prevalência de Docter como autor. Pegando sua filmografia: Monstros S.A, Up, Divertida Mente e agora Soul, ninguém condensa tão bem o espírito associado à Pixar quanto o cineasta, com sua maestria em emocionar, divertir e ensinar, provocando reflexões tanto nos pequenos quanto nos mais velhos - e esses 25 anos desde Toy Story permitiram muitos a acompanharem a trajetória do estúdio em fases diferentes da vida, confirmando bem isso. 

Não querendo dar um monopólio a Docter, pois Lasseter e Stanton entregaram belas e atemporais obras (inclusive, minha favorita deles é de Andrew, Procurando Nemo), mas a regularidade e experiência de Docter não sugou sua vitalidade, somente garantiram mais autonomia, segurança e esperteza para escolher quais histórias contar, e como desenvolvê-las. Experiência essa que lhe possibilitou ser humilde e trazer um codiretor para o projeto, Kemp Powers, reconhecendo que não seria ele a melhor pessoa para dirigir sozinho a vida de um músico aspirante e negro de meia-idade em Nova York. Conhecimento também que lhe permite arquitetar uma aula cinematográfica análoga de seu Inside Out, única obra-prima do estúdio nesta trôpega década, e tão rara nos centros Hollywoodianos atualmente, que á a habilidade e emocionar sem perder a credibilidade de conseguir extrair, daquelas figuras de contornos e traços exagerados ou "fofurizados" dos desenhos, ações e sentimentos humanos para aproximar as lições e as figuras do espectador. Nisto, até mesmo o humor contido, ainda quando lida com o limbo entre a vida e a morte e os mentores abstratos, não converge ao absurdo. 

A jornada do cineasta é a que mais explorou e amadureceu dentro da Pixar, desde sua estreia, arranhando tramas de perda, morte e depressão, normalizando temas tabu para obras que, mesmo não exclusivas, são direcionadas também para crianças. Soul, mesmo não sendo o ápice de tudo isso, é uma visão bastante criativa, brutal e inteligente disso. Se a mensagem principal é a de aproveitar os pequenos momentos da vida, não exatamente um ensinamento inovador, a perspicácia está na construção desta conclusão entre os personagens; aqui esboçados em dois indivíduos focais, o protagonista, Joe, mas principalmente a alma 22, vocalizada por Tina Fey, cuja numeração sugere ser uma das mais antigas de todo aquele universo, convivendo com colegas que são identificadas na casa do bilhão. Todo este tempo lhe trouxe cinismo e um comportamento irônico e indiferente de lidar com tudo. Sua agregação com Joe forma uma dupla clássica do estúdio, mas certamente uma das mais geniais que já propuseram, ao elaborar duas jornadas individuais que se entrelaçam no mesmo objetivo, que é dar valor à vida.  

22 e Joe se associam justamente por jamais terem vivido de fato. Ela, pelo temor do fracasso, rejeita qualquer ensinamento e, carregando o peso de aconselhamentos opressores, internalizou os próprios desejos, abraçando a casca de um quase-niilismo ao lidar com os outros. Joe, do contrário, diz, em duas passagens, como sua vida não foi nada até ali, e que justamente agora que ela estava para começar, ele morre. Mas o sujeito já tem 45 anos, provavelmente mais da metade de sua expectativa de vida. Por razões diferentes, ambos estão amordaçados em expectativas e protocolos sociais. Na eterna busca de um sentido. Um. Singular. A venda cultural de um único propósito maior, ignorando todo o resto que constitui quem somos. 

Ao adotar uma postura filosófica, Soul se mostra uma das obras menos didáticas do estúdio, não oferecendo de fato respostas, mas sim uma breve afirmação, deixando, a cargo do protagonista e 22, mas também do público, uma infinidade misteriosa de escolhas. Não a perseguição obsessiva por um propósito, mas a miríade incontável de experiências que é a existência terrena. E às vezes ela é uma droga, deprimente e injusta, mas sempre há algo para colorir tudo, mesmo que você não seja o melhor nisso. 

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