Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba the Movie: Mugen Train (2020) - Crítica
Lançado em 16 de Outubro de 2020, em meio a uma pandemia, Mugen Train se tornou rapidamente um hit imparável e colossal que quebrou basicamente todos os recordes de bilheteria japonesas para, menos de 3 meses depois, clamar o trono de filme mais rentável da história do país, despojando do posto A Viagem de Chihiro e todo o repertório do lendário Ghibli. Seu sucesso, porém, não é somente um acúmulo de anseio para voltar a frequentar cinemas, mas sim o epicentro de uma comunidade eufórica e apaixonada que se iniciou na adaptação serializada do anime, transmitida no Japão durante a primavera de 2019, e disponível hoje na Netflix brasileira.
Mesmo para quem vive na bolha otaku, o sucesso de Kimetsu apresenta pouco precedentes, e entre esses, talvez nenhum seja menos inexplicável. Em primeira instância, a história e os personagens centrais de Kimetsu não se destacam tanto de outras obras contemporâneas, nem tampouco se aproximam de outros clássicos que atravessaram fronteiras e até hoje se sustentam forte no imaginário popular e nostálgico (Naruto, Dragon Ball, One Piece, Pokémon...). Tanto é que seu mangá, mesmo sendo bem repercutido, só ganhou um boost quando o anime começou a ser transmitido. Os êxitos são muito explicados pela animação do estúdio Ufotable, que dedicou esforços que toda obra do gênero gostaria de receber - inclusive é de se questionar quantas não mereciam mais -, e apelar para a técnica e a ação bem dirigidas pode ser um alento para quem, assim como eu, ficar indignado ao ver uma obra-prima como Chihiro (isso para não contar todos os outros longas do próprio estúdio de Miyazaki quanto do cinema mundial que foram obliteradas pelo sucesso de Kimetsu), numa expressão temporal bastante assertiva para resumir uma geração. Guy Debord cunhou de "Sociedade do Espetáculo".
Mas intelectualizar e problematizar demais é uma antipatia que muito do público convencional canaliza e nutre contra os ditos "filmes de crítico". Afinal, não há nada de bom a se receber em Kimetsu? Subtraído um certo rancor por sua receita que não para de se somar, é fácil entender várias razões que explicam a adoração da obra até além da mera técnica, por mais infalível que seja essa.
Não há muita explicação em Mugen Train para quem não conheça o anime, que rapidamente se perderá em conceitos. Tanjirou, sua irmã encaixotada e seus dois companheiros embarcam num trem, juntando-se ao Hashira Rengoku para investigar o desaparecimento de dezenas de pessoas naquele ambiente, o que só pode ser obra dos vilões deste universo, demônios. A maior pergunta dentro disto é: por que adaptar logo este arco para os cinemas, e não algum outro, fazendo ponte para a vindoura e desejada segunda temporada?
A resposta, naturalmente, é a gravidade de ação que ele pede, maravilhosamente centrados, quase que completamente, num trem, e com pouco tempo a perder, uma das marcas da obra, divergindo aí, quase sempre positivamente, dos shonens tão longevos e esticados que se perdem em suas centenas de capítulos (com uma delas se aproximando do milhar). Ação essa balanceada com doses de humanismo e uma misericórdia tradicional a protagonistas do nicho, mesmo quando incompatível e inconveniente dentro de uma realidade impiedosa e sanguinária. Se os demônios do filme são menos desenvolvidos e fascinantes conceitualmente que vários mostrados no próprio anime, as ações de Tanjirou, que frequentemente causam irritação por sua negação de enfrentar a realidade e sua personalidade de cavalheiro branco, ganham mais justificativa exatamente por isso, ao expor ao perigo perante seres completamente unidimensionais. É um sacrifício desequilibrado, já que a obra jamais encontra bem como juntar um background suficiente entre vilões e mocinhos. Com amigos servindo de alívio cômico, Tanjirou unifica, por algum tempo, toda a ação e aprofundamento dramático da trama, revisitando seu passado trágico e oferecendo uma fuga que deve ser rejeitada para voltar ao sofrido e solitário presente.
A divisão de protagonismo de Tanjirou é com o Hashira das chamas, o supracitado Kyoujurou Rengoku, somente mostrado de relance no último arco do anime. Se menos de duas horas parece tempo raso demais para desenvolver um personagem que vai demandar envolvimento empático dentro de uma obra que costuma dar centenas de minutos para isso, a aparição imediata de Rengoku afugenta essa ideia ao evocar o humor inocente para nos fazer rapidamente adotá-lo como um amigo por uma atividade que melhor define a relação humana: rir juntos. Com um visual que remete ao Yondaime de Naruto, Rengoku exala dominância e imponência, mas também bondade e paixão mesmo sem precisar do título que dimensiona seu poder. Um dos mais belos benefícios da animação é a liberdade criativa que se pode exercer nela, principalmente no design dos personagens, e Rengoku é um exemplar magnífico disto, com cabelo e olhos que definem sua personalidade cálida, fulgurante e intensa. Se há muito a idade e experiências me fizeram desprezar essa unilateralidade de protagonistas shounen e seu senso de justiça e pacificação onipresentes, mesmo em condições de vida ou morte, o Hashira desafia e contesta isso, tornando basicamente impossível não ser conquistado por seu olhar penetrante e seu sorriso contagiante. Ele desarma o cinismo, o que deixa compreensível seu senso de justiça acima da choradeira de Tanjirou.
Por isso eu descarto a justificação do sucesso de algo - ainda mais algo estrondoso assim - somente pelo seu esmero técnico. Há fluidez nos golpes e um jogo de luzes que por vezes desnorteia e torna difícil perceber as coreografias, mas se não há nenhuma troca sensorial entre público e personagens, é difícil imaginar um apego emocional que dure os anos demandados entre introdução e conclusão de uma saga, ainda mais para atrair tanto público para os cinemas numa era como a atual.
Acho, qualitativamente, que Mugen Train não seja 1/3 de Chihiro, assim como pior que basicamente todos os filmes do Ghibli, com exceção dos de Goro, e nada vai mudar isso por agora. Antropologicamente, ela explica uma deterioração cultural que idolatra cada vez mais o espetáculo visual e a superficialidade cognitiva, com uma tendência irrefreável ao megalomaníaco e ao melodrama. Porém, tampouco é a única obra a fazer isso nestes dias. O que a difere, então, das outras? Por que acima de tudo, se não faz pensar, Kimetsu sabe fazer sentir. Dor, graça, empatia ou uma emoção primitiva de ver espadas colidindo e membros sendo arrancados, e isso por sua honestidade ao abraçar o absurdo.
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