Envelhecer é Morrer aos Poucos - Uma Análise de Norwegian Wood, de Haruki Murakami
Eu ainda me lembro bem como conheci Murakami. Foi na primeira metade da década passada (é um tanto estranho se referir aos anos de 2010 como década passada, não?), quando ouvia muitos podcasts de cinema e afins. Um deles era o Papricast, qual não sei se ainda existe. Era uma versão menor do nerdcast, onde se discutiam temas culturais, mas também mundanos, com desenvoltura e espontaneidade. Toda semana, um membro indicava alguma obra (musical, literária ou cinematográfica), e em um deles, o host do programa comentou sobre a trilogia 1Q84, de Murakami. Não sei exatamente o que me despertou interesse nos livros, mas imediatamente comprei um box belíssimo e os li avidamente. Eu estava vidrado.
Neste ínterim de quase uma década, em que passei da adolescência para a juventude e então à vida adulta (cries on the inside), o best-seller japonês substituiu Tolkien e Rowling e meus gostos imberbes (apesar de ainda não ter muita barba não, mesmo usando minoxidil, risos) como meu autor favorito, posição ainda conservada neste 2021. Ao contrário de filmes, apesar de eu ler consideravelmente, livros nunca surgiram naturalmente em minha vida. Eu costumeiramente termino de ler algo e fico sem ideia do que ir atrás em seguida. Nisto, mesmo que evite saturar e esgotar uma miscelânea rapidamente, absorvi muito Murakami neste período, sempre retornando a ele quando estou sem algo óbvio para ler ou então após ter tido uma experiência pouco marcante num livro. Murakami se tornou meu porto seguro.
Em algum momento desta história, eu li Norwegian Wood, para muitos sua magnum opus. Gostei, como tudo do autor, mas ainda o deixei abaixo de meus prediletos, 1Q84, O Incolor Tsukuru e, principalmente, Kafka à Beira-Mar, que foi meu livro favorito até agora, acredito. Termo no passado mesmo, pois eu resolvi, novamente, me aventurar em Norwegian Wood, qual pouco me recordava. Gostaria de citar um motivo, mas não há. Ainda existem vários livros de Haruki que não li, mas fui atrás de um, um que não me marcou profundamente à época. E ainda bem que o fiz.
Um dos motivos que me cativam em Murakami, além da mera estilização, são suas temáticas. Ele é muito comparado com J. D. Salinger e Kafka pelo uso o surrealismo, alienação e solidão da juventude contemporânea (cada um em suas devidas eras, já que são sensações reverberantes em multi-gerações). Porém, um diferencial que me faz ter favorecimento pelo japonês, é uma característica que também me faz amar tanto a cultura asiática, que é a sensibilidade minimalista para retratar personagens e epopeias introspectivas em períodos de transição e turbulência. Mesmo sendo bastante criticado internamente em seu país por fazer uma literatura demasiado Ocidental, Murakami conserva essa subjetividade melancólica e sutil nipônica. Seu universo não foca sempre em jovens, mas sim em pessoas perdidas entre fragmentos bruscos em suas existências, convergindo passivamente por uma correnteza incontrolável. O mundo de Murakami, extravagante e místico, é indiferente a nossos desejos e insensível a nossas dores. Por mais que se deseje que ele pare alguns instantes e reconheça nosso sofrimento, ele não o faz. O divino inexiste, e o sobrenatural surge com naturalidade como uma zombaria de crenças superiores.
São elementos que justificam uma consternação que transita entre a vida e a morte, em pessoas cujo instinto de sobrevivência convive com o suicídio, mas se vê incapaz de praticá-lo, consternados na solidão e deterioração interior, presas à vida, frequentemente vendo àqueles que ama os abandonando. Se o cinema de Shyamalan, mesmo em meio ao caos, retrata a simples existência como um milagre, para Murakami, ela também pode ser vista como uma maldição.
Numa idade (mental, principalmente), em que busco sobriedade e não uma fuga escapista sentimentalmente irreal, mas sim identificação numa existência lúgubre e que definha, Norwegian Wood, lançado há mais de 30 anos, conversa mais com meu âmago, ainda que eu já ultrapasse a idade dos protagonistas, do que seus outros contos, principalmente os contemporâneos. Pois se o surrealismo de Murakami é sua marca e referência, também são um vício em seus projetos mais recentes, por vezes se esgotando e repetindo ao fim, o que reduz a imersão da leitura. Já em Norwegian Wood, nos primórdios de sua carreira, eram elementos experimentais e preferenciais acima de uma compulsão, o que equilibra o resultado. A trama gira mais solidamente no plano terreno, em que a morte surge como uma escapatória metafórica e real, sendo ela própria e a vida elementos suficientemente preternaturais para se necessitar buscar explicações transcendentais ou incompreensíveis em alucinações ou aparições espirituais. Estar vivo já é inexplicável o bastante.
Por mais que possa ser definido como um Bildungsroman, um romance de formação de origem alemã (a qual pertencem O Apanhador no Campo de Centeio e Os Sofrimentos do Jovem Werther), ele não se restringe à uma visão juvenil (ou eu sou imaturo demais por me identificar com personagens 5-6 anos mais jovens). Norwegian Wood é protagonizado por Toru Watanabe e acontece como uma recontagem de memórias a partir de lembranças que surgem em si nas primeiras páginas. É claro, a partir de então, que o ponto pivotal de sua vida se deu nos anos que ele discorre, com um certe amargor e arrependimento. Como um acúmulo de recordações que o moldaram no presente, irredutivelmente, no que parece uma vida infeliz. Isso faz sentido pois somos, afinal, a soma de nossas memórias. Somos um livro individual com capítulos marcados por centenas de pessoas, e como tal, algumas partes vão ser mais importantes do que as outras. E a metade de década recontada por Toru é que o definiu e parece perseguir desde então.
A partir das questões descritas, sensações ou ações propriamente ditas, o tom do Toru do presente, taciturno, encontra explicação nos trejeitos de Murakami comentar o mundo e o jovem através de traumas irredutíveis que condenam a vida a uma meia-passagem. Toru logo teve de conviver com o suicídio do melhor amigo (Kizuki), que deixou ele e sua namorada (Naoko) desamparados e basicamente sozinhos para seguir em frente. É natural o refúgio mútuo que buscam, e que a cada passo demarca esse aprisionamento no passado, em que ele tenta fugir desesperadamente e ela parece afundada. Não há propriamente dito um amor, mas um pertencimento a um resquício de passado feliz compartilhado. É como buscar na nostalgia um resgate de pequenas sensações perdidas no presente. A experiência nunca será racional, mas sim sensitiva. Naoko, a antiga namorada de Kizuki, relembra um fetiche otaku da garota frágil e carente descontruída a um estado de putrefação e parasitismo na mente de Toru, que se diz programado para dar corda em si mesmo diariamente e predisposto a viver da melhor forma possível, mas preso nesta situação. Ele encontra uma nova garota, Midori, espontânea e divertida, e mesmo assim se vê incapaz de abraçar o caminho mais óbvio da felicidade.
Isso poderia ser visto cafonamente como uma representação da irracionalidade de nossas escolhas quando no reino do emocional. Mas retrata mais um mundo que nos impulsiona para a modorra e a insatisfação plena. O crescer visto como uma perene e imparável morte interior. Murakami fala muito sobre a perda da beleza inocente e brilhante de suas personagens, e isto se deve justamente a um encanto que se quebra no mundo adulto. Ser adulto que é o destino deixado somente a Toru após seu círculo de infância ser interrompido pela morte, sendo ele o elo terrestre de um passado agora intangível, esquecido e conservado somente dentro de si. Mas quem é amaldiçoado, aqueles que desistiram e escolheram partir, ou quem ficou para trás, único representante de algo agora inexistente? Ser a única pessoa que valida a existência de certas memórias soa asfixiante, intimidador e de uma solidão angustiante e opressiva.
"Pessoas deixam estranhas pequenas memórias delas mesmas quando morrem", diz uma personagem. Longe de uma filosoficação, fala mais da ilusão gerada pela própria memória, como um truque. Toru tenta resistir, abraçar o normal (representado aqui por seu amigo racional, Nagasawa, um arrogante e brilhante sujeito), ao transar com garotas, trabalhar e frequentar pontualmente a universidade. Mas por mais que insista, ele sempre é fisgado pelo etéreo de seu passado na figura de Naoko. Os temas de suas conversas são difusos e sempre se direcionam ao passado e Kizuki. Nisto, é um refúgio de aprisionamento ou libertação? Ou a única libertação de um presente exaustivo está na rememorização de uma pureza perdida? Não há, então, nenhuma leveza. O presente não lhe diz nada, e o passado é sua única fonte de comoção, mas está é a tristeza. A única dúvida é entre não sentir nada, o que configura uma ascese de sentidos, uma morte interior, e buscar a intensidade da melancolia extrema. Uma auto-punição contínua.
É uma experiência breve a leitura de Norwegian Wood, tanto quanto os pequenos anos que definem o livro e nossa personalidade. Uma das personagens, Reiko, a mais velha retratada na trama e próxima de seus 40 anos, que já se diz vazia por dentro, diz a Toru como temos 2 ou 3 chances, no máximo, de ser felizes na vida. Mas para todos seus personagens, esses momentos são vagões que passam desgovernados em uma rodovia desolada a escura. Os únicos caminhos de se seguir em frente são ou a morte, ou uma indiferença e egoísmo latentes, vistos em Nagasawa, que não se importa muito em rebaixar e ferir os outros, preocupado somente consigo mesmo. Ele não é o vilão, mas o arquétipo moderno de alguém bem-sucedido. Enquanto Toru, vagando entre a vida e a morte em suas relações, é incapaz de buscar a pacificação de tirar sua própria vida, e por isto, se torna um receptáculo de Naoko, Kizuki, Reiko e Hatsumi, figuras emblemáticas que passam por seu cotidiano nos anos delimitados na narrativa. São pessoas que depositam nele um fardo que não conseguiram confrontar.
A visão de Murakami disto tudo é meramente observacional. Ele não se envolve, na figura de Toru, em movimentos estudantis, críticas sociais ou discussões modernas, e se há um cerne em sua carreira, é um espelhamento que une o indivíduo, tanto o Toru de 1987, quanto o Kafka Tomura de 2002, a Aomane de 2009 ou o Tsukuru de 2013, da condenação de viver morto em uma terra que pune a emoção, num mundo de solidão, melancolia e memórias que nos pesam e preenchem.
Somos todos não só formados por nossas memórias, mas também daqueles que as depositaram em nós.
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