Luca (2021) - Crítica
A Pixar já passou por algumas fases nessas quase três décadas desde o lançamento colossal de Toy Story. De "evitaremos ao máximo fazer continuações" a "priorizamos histórias originais", para então fazer um pé de meia por vezes exaurindo marcas famosas. A atual filosofia, após Toy Story 4 (que eu amei), é voltar a focar em histórias inéditas. Luca é o terceiro filme de uma sequência sem continuações vindas do estúdio, após Onward e Soul. Porém, mais definitivamente, ele marca uma emancipação necessária ao estúdio, sendo a primeira idealizada e desenvolvida inteiramente sem o envolvimento de John Lasseter, principal expoente entre os três animadores que ajudaram a canonizar o estúdio, em nenhuma fase de produção. Andre Stanton (Nemo, Vida de Inseto e Wall-E) não se envolve em nada desde Toy Story 4 e parece convergir para um retorno ao mundo dos live-action após o fracasso de John Carter, enquanto Pete Docter (Monstros S.A, Up e Soul) assume posições de comando e deve rarear seus créditos como realizador.
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A Pixar urge uma renovação criativa, um processo sempre áspero, e que o Ghibli nunca conseguiu realizar, por exemplo. A vários nomes foram dadas chances de crescer dentro do estúdio, começando por participações em storyboards, curtas, e então, se preparados, assinar a direção de um longa. Foi assim com Dan Scanlon, de Onward, Lee Unkrich (Toy Story 3 e Vida), Josh Cooley (Toy Story 4), Peter Sohn (O Bom Dinossauro) e Brian Fee (Carros 3). Todos artistas criados ou maturados dentro da Pixar. O novo nome desta passagem de bastão é o italiano Enrico Casarosa, já indicado a um Oscar pelo exuberante curta La Luna (de 2011), além de créditos em Ratatouille, Up (Storyboard) e Vida (já no processo da história).
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Já na faixa dos 50 anos, talvez Enrico tenha ganhado essa oportunidade um pouco tarde, mas essa espera lhe logrou uma oportunidade vantajosa e benéfica para se estabelecer: o Disney Plus e a Pandemia. Ao contrário de Mulan e o próprio Soul, Luca está disponível sem nenhuma necessidade de acesso premium na plataforma. O que justifica essa atitude e mentalidade do estúdio para um lançamento de grande notoriedade e orçamento? Sua escala e abrangência, eu diria. Uma ação que, mais do que nunca, parece conversar com sua própria temática.
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Luca se aproveita de tantos minimalismos que há muito não se vê no estúdio, cuja alcunha de "pequenas grandes histórias" talvez careça de algum descanso, algo notório tanto nos personagens, quanto na geografia e dimensão de Luca, que se passa nos anos 50 na Riviera Italiana, na cidade fictícia de Portorosso. Adaptando a essência local nas obras de Fellini e o ambientalismo por vezes introspectivo do Ghibli (e suas frequentes inserções na cultura europeia do século passado) na espiritualidade expansiva e calorosa da Pixar, há uma atmosfera mais melancólica e taciturna que o normal na obra de Enrico, que um usuário do letterboxd sagazmente apelidou de "Call Me By Your Nemo", aludindo outra similaridade óbvia com o livro/filme que se passa no interior italiano e fala sobre o romance de dois rapazes, com a temática aquática.
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Acontece que, diferente do habitual à casa de Luxo Jr., as características mais sobrenaturais da história são pouco necessárias enquanto narrativas, fora um uso metafórico, até por isso a falta de foco e profundidade tanto no espaço quanto na sociedade do folclore submarino. O interesse focal no mundo humano pode parecer frustrante quando nos vemos diante a possibilidade de viver numa Pixar submersa, mas seus personagens e intenções logo tornam a Portorosso pelos olhos dos protagonistas amável justamente por sua presença. Ao contrário de A Pequena Sereia, outro com qual divide similaridades, o objetivo de Luca é o incidente incitante para uma história de amadurecimento e autoconhecimento acima de confrontar um conflito direto e alarmante - ainda que este exista.
Claro que essa atenção numa interação e descobrimento não é novidade, sendo vista, por exemplo, no subestimado e supracitado Toy Story 4, mas menos do que nunca, as motivações da trama pouco se movem acerca de situações extremas e emergenciais, e sim se contentam - se melhor se encontram - num slice of life sobre o descobrimento pessoal e social que Luca percebe, juntamente a Alberto e Giulia. Tanto o antagonista quanto o perigo inevitável da caça aos monstros soam como acessórios, e inclusive por vezes até prejudicam a obra, como se o texto não tivesse muito interesse em trabalhá-los e o fizesse mais por uma imposição financeira - tendo a resolução de um dos casos, justamente, uma sensação por demais efêmera e fácil. É uma contradição entre querer e precisar dizer que fere a alma da própria película.
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Mas que não a impede, todavia, de ser uma experiência marcante, deslumbrante e carismática, que usa a geografia local para aprofundar suas dinâmicas e sonhos de uma forma não vista na Pixar desde...nunca? O esmero técnico é mero figurante em meio aos olhos apaixonados de Luca, por mais simples e conservadora que seja a atmosfera civil ali. É o foco num charme que resgata o romantismo associado à época, casando bem com o nicho da animação e o escapismo Pixariano, sendo ao espectador cabível ou não, de acordo com seu próprio niilismo ou cinismo, abraçar essa idealização que serve aos personagens e causa empatia suficiente para uma emoção orgânica.
Luca é uma animação moderna numa roupagem clássica, de âmbito social e alcance abrangente. Tímido e sutil em suas metáforas, porém sucinto e eficaz no que deseja transmitir. É um bom respiro após tantos anos de mega histórias e um esforço danoso de encontrar um gatilho criativo místico para contar suas aventuras, subvalorizando um aspecto primitivo e primário de um bom filme, livro ou qualquer narrativa, que é construir um mundo e personagens coesos, não necessariamente preternaturais. A esse que vos fala, Luca é o longa mais sensorial do estúdio desde Inside Out, e o que mais soube trabalhar com a introversão em toda sua criação.
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