Revisitando Speed Racer - O Verão que Definiu o Futuro de Hollywood

Assistindo ao final triunfante e catártico de Speed Racer, terceira vez na vida, aos prantos pela primeira, me peguei pensando, afinal, o que deu errado com o filme, assim como na indústria de Hollywood, que tão pouco conseguiu replicar ou sequer igualar a alma da primeira obra das irmãs Wachowski pós-Matrix desde 2008, e só sucedendo, em partes, na adaptação de uma obra japonesa em 2019, mais de 10 anos depois, com o Alita de Robert Rodriguez, outro autor da hiperestilização. Olhando a bilheteria catastrófica do filme e o calendário qual ele se inseriu, encontra-se a resposta para as duas coisas. O filme foi lançado dia 9 de Maio de 2008, numa época em que lançamentos ainda era nas sextas-feiras, e não nas quintas, como hoje, uma semana depois de...Homem de Ferro, e cerca de 2 meses antes de...O Cavaleiro das Trevas. Um fez quase 600 milhões, um ultrapassou a então rara barreira do bilhão (sem 3D), e outro não completou nem a primeira centena de milhões de doletas, a maior bomba do verão americano, nem próximo de cobrir o orçamento de produção (120 milhões), quanto mais a divulgação. 

Como tudo na vida, é fácil de se perceber hoje, quando já passaram tantos verões daquele, mas enquanto o enfrentávamos, ninguém podia saber que, entre todas as temporadas de blockbusters, aquela foi a que definiu, até hoje, os rumos do cinema Hollywoodiano. O verão que Batman e Marvel triunfaram, e Speed Racer fracassou. 

A teoria da Navalha de Ockham, em que a resposta mais simples tende a ser a mais correta, basicamente explica o principal motivo que levou a isso: as Washowskis estavam à frente de seu tempo. Assim como foi com Matrix, aliás, Mas enquanto a história de Neo se desbravou mais no conceito e nos efeitos do que na arquitetura visual daquela realidade, logo, mais convenientes ao gosto popular, Speed Racer foi uma tentativa completamente pioneira e radical para a indústria no momento, e devido aos resultados financeiros, até hoje. Um experimento de linguagem, devidamente. Filmando basicamente todo quadro num foco central e total, já no prólogo, a intenção das diretoras é exposta para um público então desavisado. Hoje cunhado como um "desenho em live-action", a ideia é mesmo deixar os personagens como que numa segunda dimensão, como se víssemos as páginas de uma HQ - ou mangá, em referência ao material original - exibidas rapidamente em tela para dar a sensação de movimento. O prefixo hiper denota a superação de uma normalidade. Significa excesso, uma transgressão de linearidade (essa peguei da Wikipédia). As cineastas optaram por modernizar a expectativa numa hiperlinguagem, e que aqui jamais possui sentido pejorativo, recheando a tela e seus ambientes com um jogo de estímulos visuais ora futuristas, ora ingênuos como os saídos de shows infantis ao estilo de Lazy Town e Teletubbies, um visual cartunizado para se aproximar, não exclusivamente de seu material de origem, e sim da assinatura visível em animes e mangás. É uma ode à teatralidade artificial - deliberada - que contraste com as visões de Nolan e Favreau que viraram a lupa de Hollywood pro realismo, curiosamente todos extraídos de HQs. 

O que as coloca à frente do tempo, também, é essa convicção e assertividade de compreender com exatidão as razões do sucesso de seu material original, precedendo o que depois levou muitos a fracassarem tantas adaptações de propriedades intelectuais japonesas, aí já mirando no legado realista deixado justamente por Homem de Ferro e Cavaleiro das Trevas. Até mesmo as adaptações japonesas acabaram optando por essa vertente mais fria e factível, o que acaba sendo ainda mais desastroso pelas limitações de orçamento das produtoras nipônicas. Foi, novamente, preciso outro diretor que se assemelha às Wachowski na paixão pela estilização como ferramenta ilusória análoga ao cinema de gênero, já num cenário mais favorável de saturação crescente ao realismo asséptico impregnado da Marvel, para ressurgir com uma boa adaptação de mangá, o supracitado Alita, menos (ou nada) experimental, mas ao menos honesto com sua origem e consciente de como fazê-lo funcionar (que infelizmente, claro que em menor grau, ficou abaixo das expectativas na bilheteria). Antes dele, tivemos Edgar Wright, que na onda das irmãs fez o também brilhante Scott Pilgrim, que se utiliza dos mesmos recursos visuais e o humor típico do cineasta para transpor os quadrinhos para a tela, também derrubado pela incompreensão pública em uma bilheteria aquém, e que igualmente vem recebendo louros num reconhecimento tardio como cult. 

Que outra maneira haveria de adaptar um anime de corrida como Speed Racer do que acreditar na própria fantasia do absurdo daquele mundo, situações e personagens e transpô-los em tela? Qualquer um com alguma experiência nesse universo reconhece que nada poderia ser "mais anime/mangá" do que personagens chamados de "Corredor X", "Speed Racer" e outro que joga cobras de seu carro, ou então as situações frequentemente Deux ex que envolvem reviravoltas para beneficiar a condução da narrativa quando tudo parecia perdido? A ignorância e incompreensão a tudo talvez tenham sobrecarregado a muitos, gerando ridículas acusações de roteiro preguiçoso, previsível e histriônico, o que nada mais condena do que a decadência da própria crítica, demandando uma revolução dentro de círculos ditos intelectuais na análise da arte. Foi assim que filmes como Johnny Guitar e Blade Runner "floparam" em seu tempo, mas encontraram adoração e até viraram objetos de estudo nas décadas seguintes. 

No entanto, atribuir todas as escolhas e a identidade de Speed Racer a um jogo de referências seria, igualmente, um equívoco tolo e presunçoso, pois isso seria subestimar a personalidade das próprias Wachowski dentro do núcleo do filme, afinal, sua narrativa visual é um elemento de condução e imersão que não funciona somente como estímulos espetaculares, porém vazios, e sim numa simbiose metafórica para o que elas ainda buscavam entender e transmitir naquela época. O próprio contexto das duas é imprescindível para o entendimento exato do núcleo espiritual de Speed Racer. Foi logo após o lançamento do filme, que Larry começou a transição para virar Lana. Se Matrix ganhou toda uma ressignificação de redescobrimento e libertação transexual com o tempo, Speed Racer acaba sendo a derradeira carta de revelação da diretora. De aceitação e pazes consigo mesma. As similaridades entre os dois projetos, aliás, são claras. Em ambos os casos, são protagonistas que se rebelam contra um sistema opressivo e manipulador, buscando encontrar, nesse período, a própria essência e valores. Acreditar neles mesmos.

Porém, se Matrix ainda é um início de jornada, conturbado e mais agressivo, em Speed Racer, já há uma constatação da própria virtude e paixão, e o que resta é assimilar isto num cosmo intimidador que tenta aniquilar e sabotar a vazão da própria paixão. Você ama e é muito bom no que faz, passos essenciais da felicidade e que tornariam óbvia e fácil a opção do que escolher, mas há elementos exteriores, expressos aqui no sistema capitalista pela figura de um empresário - claro que caricato - malvadão que resume tudo a cifras, compondo a antítese do Speed de Emile Hirsch, completamente vidrado desde criança em um único assunto, e assim como seu pai, defensor de um romantismo acerca daquele elemento que só podem ser usufruídos independente das megacorporações. O problema é que são essas corporações que controlam o sistema, e logo, irão tentar lhe eliminar. 

O espelhamento, duplo, provavelmente, das diretoras na figura do protagonista e até de seu pai e irmão - ou toda família, talvez? - são nítidas quando, mais de uma vez, Speed é lembrado que o que ele faz nas pistas não é correr, é arte, como uma pintura ou um livro. O que as irmãs fazem, é claro, é aproximar uma corrida de uma arte forte e expressiva para se encaixar no que elas acreditavam e passavam no momento, assim como também será com Matrix 4, dessa vez só com Lana. É isso que torna o filme, mesmo que filmado todo em Chroma Key, tão honesto, sensível e emotivo, que possibilita a catarse de lágrimas que esbanjei na vitória final, na crença da possibilidade das manobras de Speed e a temerosidade por seu futuro mesmo sabendo, de prontidão, que ele não morrerá. É por que elas também acreditam e amam aquilo. Amam seus personagens, o que eles fazem e defendem, por mais revolta que seja a maré que se tenha de enfrentar para conquistar a própria liberdade. 

Neste dezembro, novamente teremos uma escolha entre a arte de uma das Wachowski, ou do realismo extenuado e maçante da Marvel. Como Speed e elas, uma segunda chance de concretizar a própria satisfação. De brindar o cinema, a arte e a fantasia. E talvez, só talvez, redefenir pra melhor o rumo dessa indústria que tanto amamos. 

Ao final de Speed Racer, quando o protagonista vence o Grand Prix e desmascara o capitalistão, há o seguinte diálogo:

"Isso pode mudar tudo."

A resposta?

"Já mudou."