Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (2021) - Crítica
Há um prólogo muito romântico em Shang-Chi que remete aos clássicos Wuxia da cultura chinesa, obras que mesclam artes marciais com misticismo, ao estilo de clássicos mais contemporâneos como "O Tigre e o Dragão" e "O Clã das Adagas Voadoras", introduzindo o vilão Mandarim, interpretado pelo lendário ator Tony Leung, e seu par romântico, vivido por Fala Chen, em que os dois iniciam um combate com as características típicas do subgênero, com saltos acrobáticos e uma luta que logo se transforma uma dança poética, exalando um sentimento que começa a se criar entre os dois, reforçado pelo expressivo e tocante olhar dos atores. É um momento mágico para se iniciar o filme que até permite esquecer se tratar de um filme da Marvel. E os melhores momentos de Shang-Chi, pelo restante de seus 145 minutos, são os que se isolam do universo interligado do MCU, e é essa obrigação de conexão, porém, que quando surge derruba a obra.
A comparação de Shang-Chi com Pantera Negra é inevitável, se tratando das duas obras que expandem etnicamente aquele mundo, retratando heróis de minorias, diferentes do padrão do homem branco americano de ascendência europeia. A obra dirigida por Ryan Coogler, aliás, talvez tenha sido a que melhor se afastou da rotulação infantil da Marvel, conseguindo inclusive 7 indicações e 3 vitórias no Oscar, respeitando, exaltando e diferenciando etnicamente Wakanda e seus habitantes. O prólogo de Shang-Chi demonstra um conhecimento e respeito históricos à cultura asiática como um todo, talvez jogando seguro demais, mas ainda assim corretamente, ou ao menos com habilidade. Porém, a necessidade de se passar ao redor do mundo, as conexões com um MCU que parece cada vez mais parasitária com as fitas isoladas de seus integrantes revelam também uma aparente insegurança em contar uma história de um chinês, reforçando recorrentemente como ele divide - ou dividia - o planeta com Tony Star e Steve Rogers.
A presença da vila encantada de Ta Lo, igualmente, é sentida e sugerida em toda obra, e quando surge, revela uma beleza exuberante e criaturas folclóricas interessantes e que denotam o extraterreno e místico do local, mas tampouco é explorada além da mera observação admirada de um primeiro-contato, experiência compartilhada entre público, Shang-Chi e sua sidekick, Katy, interpretada divertidamente por Awkwafina. Shang-Chi transita entre o reverente e a cultura chinesa, com seu protagonista sem poderes, e quando se absorve nessa quest familiar e fuga do Mandarim e o exército dos 10 anéis, o filme apresenta momentos que por si só geram uma impressão marcante e que flerta com o excelente, principalmente através da química do elenco, a destacar quando Tony Leung, um dos maiores atores de todos os tempos, está em tela, encarando seu antagonista com a mesma intensidade e delicadeza que exibiu nas obras-primas que estrelou em sua terra natal.
Porém, sempre que o longa almeja se perder dentro da própria mitologia, é como se a cara de Kevin Feige surgisse com um berrante e uma careta, assim como esses memes de susto que invadem a tela para surpreender o espectador. São as piadas intromissivas que atenuam cenas que clamam por uma seriedade dramática maior, inseridas algoritmicamente e subestimando o público como se esse incapaz de suportar uma narrativa sem um humor forçado a cada tantos minutos, ignorante como esse recurso enfraquece a jornada dos protagonistas e a imersão na história. Esse desespero por extrair graça em cenas inoportunas, inclusive, desrespeita a atuação de Awkwafina, cuja maior virtude é conseguir projetar o humor de cenas diversas e impensáveis, mas aí com uma naturalidade pedestre inatingível pelo formato Marvel. Somando os momentos da atriz com as interrupções Marvelescas, é frequentemente insuportável ter tantas quebras diegéticas.
Mas se essa "falha" do filme pode passar imune ao diretor Destin Daniel Cretton, afinal, é algo recorrente em todo a filmografia do estúdio, independente do realizador, é inevitável atribuir ao cineasta a inexplicável escolha estética (ou ausência de) nas cenas de ação. É ainda mais curioso, pois a primeira luta de Shang é dirigida com argumento arquitetônico e ágil dentro de um ônibus, um ambiente estreito que Destin consegue usar a seu favor, com uma coreografia fascinante e frenética do saudoso Brad Allan. Quando o primeiro embate de sua fita já demonstra um alto nível, o que esperar, então, do clímax? Pois a partir deste notável confronto em alta velocidade, quase todas as cenas de ação de Shang-Chi são filmadas no escuro, com baixo ou nenhum contraste de fundo, incluindo o exército dos 10 anéis com vestimentas escurecidas, dificultando quase que completamente a amostra do trabalho feito, como se fosse um recurso de filmes de baixo orçamento para esconder defeitos técnicos, o que não é o caso de Shang-Chi.
O saldo final é uma hipótese. É um bom filme com suas virtudes, que talvez fosse excelente se não estivesse preso a um cânone que cada vez mais asfixia as liberdades criativas de seus realizadores e do potencial de cada microverso particular. As piadas fora de hora, mas também as obrigatórias menções e aparições de outras figuras do panteão Marvelesco. Filmes de origem não são mais meramente de origem, mas também de integração. São as ótimas cenas de ação - quando não filmadas no escuro. A recriação encantadora de um vilarejo mágico, cheio de seres mirabolescos - sem nenhum desenvolvimento. A inserção do Mandarim "fake" de Ben Kingsley acaba sendo um grande escracho da Marvel, pois une, concomitantemente, essa obrigação de unir a obra com a mitologia existente do MCU, remetendo ao esquecido Homem de Ferro 3, como usar de (mais um) alívio cômico recorrente e progressivamente irritante - Ben Kingsley também não merecia isso.
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