Uma Carta de Amor a Ash Ketchum



Assistindo ao documentário "The Fire Within", de Werner Herzog, sobre os vulcanologistas franceses Katia e Maurice Krafft, em meio a uma vida poética e dedicada, chama atenção um aspecto bem sentimental e minimalista que acaba, por fim, dando mais adornos românticos a sua história; falo do fato de que, entre suas arriscadas e grandiosas expedições mundo afora, voltavam para um pequeno vilarejo camponês que parecia resistir ao modernismo, na região em que ambos nasceram. 

Mais do que o amor que os levou a se conhecerem e, posteriormente, partirem juntos, é essa divisão extra-câmera e trabalho que de fato expressa a sua intimidade e o misticismo que nunca conhecemos, afinal, jamais esteve no imaginário popular ou instigou a curiosidade como as imagens de erupções por aí. Por trás desse fascínio, havia um refúgio compartilhado, de segurança e simplicidade, a que se retornar e, então, recarregar para mais missões vulcânicas.

Não se passa somente pelo conceito da nostalgia, esse apego, e sim da própria segurança e bem-estar, tanto um do outro, como do local. Sendo bem-sucedidos e até celebridades de nicho, por certo que poderiam viver em qualquer metrópole europeia, até mais acessível e prática, mas a alternativa sempre foi retornar para aquela região bucólica, saudosista também, é claro, e isolada. Ali as câmeras não chegavam. Momentos bons e ruins, planejamentos, tantas décadas e fases entre portas e paredes intransponíveis até mesmo num casal de vida pública. 


É uma identificação, claro, universal, e ainda assim, tão pessoal. Eu, por exemplo, pouco apego nutro familiarmente e, especialmente, ao local que nasci - mais perto de ser um ranço e desprezo, na verdade. Com tantas migrações internas, casas, apartamentos, empregos e estudos, fica até difícil conservar uma lembrança tão estabelecida em algum lugar, e mais em alguém, ou algo. 

E nisto, sempre sou direto e honesto. Dedicado à arte como sou, o refúgio mental está no cinema, na literatura, no audiovisual em si. E meus três pilares são - e sempre serão, certamente -, Harry Potter, Senhor dos Anéis e Pokémon. Sem ordem definida, até porque isso muda. E mesmo que não seja a maior delas, nenhuma é, nem jamais será, tão antiga e precoce quanto Pokémon.

Já discorri muito sobre minha relação com a franquia aqui, e não é esta a intenção do momento. Mas é importante ressaltar algo que será válido para o que quero discutir: a relação com Pokémon não foi sempre intensa, presente e ativa. Muitas vezes adormecida, inativa, mas sempre, sempre num espaço pessoal de reminiscências reservadas somente ao marcante, positiva ou negativamente. 


Quis o tempo, felizmente, que entre o amadurecer e a separação de recordações exclusivas do passado e o que acompanha no presente e futuro, Pokémon se tornasse companheiro frequente, mesmo que no banco de caronas. 

E isto, reitero, não quer dizer obsessão. Não é uma paixão. É um amor, um amigo muito querido de tempos. Posso não vê-lo sempre, talvez passe bastante tempo longe, mas há um contato, ainda que tímido, constante, e quando nos reencontramos, não há estranhamento ou constrangimento, e sim uma familiaridade tão íntima que não se pode descrever ou replicar que não organicamente. É algo reservado somente a nosso núcleo mais especial.


Eu volto e solto Pokémon Go. Nem comprei ainda Pokémon Violet ou Scarlet e tampouco virei Let's Go ou Arceus, às vezes passando meses sem os jogar. Estou em par no mangá lançado pela Panini. Amo a franquia e a consumo multimídia, mas nada se compara ao sentimento que nutro ao anime. Seja no ensino fundamental, médio, cursinho, faculdade e agora no emprego, tive poucas constantes. Como supracitado, me mudei muito. Amigos vieram e foram como as cidades e escolas. A regularidade se manteve justamente na ficção. E entre um seletíssimo grupo de parceiros, sempre, em todas essas fases que atravessam mais de duas décadas (muito em meus, no momento, 27 anos), Ash Ketchum, da cidade de Pallet, sempre esteve lá, como um desses amigos do peito. 

Quando conheci Ash, era mais novo que ele e ainda poderia sonhar em entrar numa aventura Pokémon quando fizesse 10 anos, numa ingenuidade esperançosa que rapidamente é sobrepujada pelo golpe da realidade. O Modus operandi da cultura pop, por um tempo, também me fez ter bastante raiva e subestimar o treinador que, liga atrás de liga, jamais havia conseguido vencer um torneio, sem falar em como muitas vezes não evoluiu seus Pokémon, os mantendo num estágio inferior. 


Só que Ash nunca foi somente um treinador de batalhas. Sua idade cronológica se estagnou. Porém, o amadurecimento de tantos anos de viagens veio de várias formas; graficamente, na mudança de visual para se adequar aos princípios modernos; a personalidade perdeu a pirralhice inicial e adotou uma planificação mais otimista e determinada, também adaptando-se ao mundo atual; mas a maior das mudanças percebidas está dentro do próprio espectador e sua compreensão e interação com o personagem de Ash. 

É o próprio tempo e a sabedoria (quase sempre) inerente a ele que nos faz perceber, por exemplo, que Ash não fora imbecil ao não evoluir seus Pokémon, mas sim mais consciente, respeitoso e empático com as criaturas do que quase todos a seu redor e o espectador mesmo. A evolução estratégica, por vezes, resvalou nas incoerências do roteiro, mas jamais deixou de estar presente. E nisto, com tantas histórias, um momento revoltante como perder o que seria o aguardado ápice da jornada num anticlímax broxante de seu Charizard se recusar a batalhar com um Pikachu acaba sendo um lembrete justamente dessa evolução, e aí falamos do treinador, mas também de seu amado Pokémon, para muito o mais. 


Pois mesmo se buscasse se renovar e não se sobrecarregar de um histórico para atrair novos espectador, sempre houve um aceno ao passado para lembrar aos mais antigos que sim, tudo ainda estava lá. E nisto, suas visitas ao laboratório do Professor Carvalho eram tão emocionantes a nós do que ele - e até mais, visto que na nossa cronologia, muito mais tempo se passou, assim como quando se reencontrava com amigos de outras jornadas. 

Muito se critica a falta de ambição e aparente simplicidade e desleixo deste arco final de 11 episódios de "adeus" ao personagem. Há alguma razão, é claro, mas especialmente uma falta de interpretação que marcou toda a trajetória de Ash. O Ash treinador não precisa mais provar nada. É campeão regional, de ligas menores (Ilhas Laranja e Batalha da Fronteira) e, finalmente, mundial (se Leon lhe deu o benefício dos 3 atributos especiais é azar dele). A sequência do anime fugir da lógica e ignorar bastante o Ash campeão dialoga justamente na transcendência que ele atingiu no mundo Pokémon, aí em busca de ser, como sempre foi seu lema, um mestre. Como para ser um mestre Jedi não basta o manejo exímio do sabre de luz, as habilidades de batalha e charts não lhe tornam um mestre Pokémon. 


É algo totalmente explícito, mas que ainda passa despercebido por muita gente, o arco que se define nestes 11 episódios. Com poucas batalhas e sem um objetivo linear, Ash roda por aí com seus amigos mais antigos, ainda perseguido pelos mesmos vilões, enquanto as batalhas são completamente coadjuvantes a uma interação tão emotiva e dedicada ao mundo e os Pokémon. Ash salva Latias sem a ambição de capturá-la. Para tudo para liberar um Wailmer e trazer conforto a uma Banette solitária. Da mesma forma que já fez tantas vezes, com seu Charmander e Chimchar, e também na decisão de liberar Pidgeot, Butterfree, Primeape, Lapras, Greninja e Gooda a destinos melhores, ainda que pudessem ter sido muito úteis em batalha. 

É por isso que, ao derrotar Leon, Ash ainda não se considera um mestre Pokémon, por mais que talvez o seja, ou talvez esteja mais perto quanto qualquer um. É uma palavra sem definição, atribuível a qualquer um como se queira. Mas se alguém a merece, após todo esse tempo, é nosso querido amigo.


E agora, quando de supetão, somos arbitrariamente informados de que Ash e seu Pikachu estão prontos para dizer adeus e passarem o bastão a novos protagonistas, essa relação de conformismos e aparente monotonia tem sua súbita torrente de sentimentos jorrada a nós. Nós sempre teremos todas as memórias, mas talvez não surgirão novas. Não é uma cidade que deixamos pelo retrovisor, e sim um amigo que deixa vídeos, recordações e presentes, mas não está mais ali. De repente, sentimos de fato a importância que alguém desempenhou em nossa vida. E isto não quer dizer, jamais, que essa pessoa só nos deu alegria, mas sim que nos fez nos sentir vivos, vibrantes ou rancorosos, e quando tudo era dado como garantido, não o teremos mais.

Na próxima sexta, Ash e Pikachu terão, a princípio, sua última aparição como protagonistas de Pokémon. Foram mais de 1200 episódios e 20 filmes. Não é sobre ser moralista, sobre valorizar o que se tem tarde de mais nem nada do tipo. Nem eu sei muito bem como terminar e se tem uma mensagem atrás disso. Só que Pokémon, com Ash e seus amigos, sempre será um porto seguro e um lar para mim. Um refúgio de todo o exterior, mesmo que passe algum tempo distante. 

Eu só quero dizer o que não pude até aqui. Obrigado demais, demais, por todos esses anos. Não está nas vitórias ou nas derrotas, e sim na jornada e camaradagem. Talvez não nos vejamos mais. Mas isto, o que foi vivido, nada paga nem apaga.


Ash, eu te amo!

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