Parem de Adaptar Animes para o Público Americano

Esses dias assisti, com culposo atraso, ao clássico instantâneo de Tollywood, RRR, que fez muito barulho na Netflix em 2022 e até abocanhou um Oscar de canção original. Como li por aí, a mídia Ocidental nos preparou para todas as partes do cinema indiano, ridicularizando seus exageros, mas não nos ensinou como eles funcionam bem juntos. Considerando o filme não ser uma exceção dentro do próprio mercado, aos iniciados em tal cinema, é um evento completamente catatônico de tantas informações em tela que desafiam um cérebro programado pelo cinema blockbuster americano e, se muito, europeu. Um filme completamente apaixonado e dedicado em atingir seu máximo potencial imagético, inesgotável de ideias e sem nenhuma vergonha de abraçar o absurdo mais hiperbólico que conseguir. Um longa que reascende uma paixão que andava bem apagada nessa era constrangedora do cinema americano blockbuster, e que me fez questionar o tanto de tempo que perco com obras tão medíocres por puro marasmo e rotina de ver o "próximo lançamento".

Sendo o maior mercado de distribuição e influente dentro de nosso hemisférico, é natural que sejamos doutrinados pela cultura americana - o que não sabemos ao todo é o nível de infelicidade disso. E o novo filme de Cavaleiros do Zodíaco recria esta reflexão e atesta como mesmo no outro lado do mundo, essa susceptibilidade socioeconômica se sobrepõe a um senso de dignidade e direcionamento do que se consome. Se fez algum sentido no pavoroso Dragon Ball Evolution, entretanto, essa tentativa de levar ao público americano uma adaptação live-action dos cavaleiros de Atena é bem inexplicável como estratégia da Toei para expandir seu alcance mercadológico e atitude de "soft-power". Os EUA consomem anime, naturalmente, mas essa noção de que tais nomes são mundialmente mais proliferados não deve ser tão generalizada assim. Com One Piece, Naruto e Dragon Ball, talvez, nessa travessia de gerações incessantes - será que Kimetsu terá tal atemporalidade? Cavaleiros do Zodíaco, curiosamente, sempre foi um fenômeno menor, especialmente dentro do próprio território, mas que por si só já atesta um pouco seu tamanho global "inferior" a outros nomes. Aqui no Brasil sua popularidade é quase inigualável, o que podemos compartilhar com nossos amigos latinos (México, especialmente) e alguns europeus (particularmente franceses e alemães). 

Em território anglófono? Nem tanto. Porém, tal representatividade perene na cultura pop e alguma importância em manter tal marca nos holofotes parece ser o suficiente para a Toei insistir tanto em tentar expandir e atualizar a marca para novas gerações, frequentemente erradas, tornando Saint Seiya na que seja, talvez, a marca mais maltratada dessas tão nostálgicas a nós.

Entre infindáveis atitudes questionáveis (filme de animação 3D, a adaptação da Netflix completamente sem propósito), talvez nenhuma explique o tamanho do orçamento que dispensaram para tentar levar ao mercado americano uma adaptação live-action da franquia, entretanto, numa clara tentativa de iniciar uma série, mesmo que nada indique que fosse dar certo. Pois algumas coisas simplesmente parecem nascer para o fracasso, e essa tradução visual do trabalho de Kurumada é tão completamente, previsivelmente, fadado a isso, desde o início de seu material de divulgação. 

Mercadologicamente, a escolha de direcionar ao mercado americano não faz sentido pois, se nenhuma geração desde os anos 90 se empolgou com os Cavaleiros, por que seria diferente agora? Que inovação narrativa poderia trazê-los a uma notoriedade inédita? Se Dragon Ball Evolution freou um pouco essas iniciativas, os sucessos recentes de Pokémon, Kimetsu e One Piece no Tio Sam parecem ter estimulado o suficiente a Toei a tentar isso, talvez com a ideia de que justamente essa influência americana fosse útil para espalhar a marca em países que não têm a franquia incutida em seu DNA pop. A intenção é, mesmo, o novo, trazer novos fãs, e não agradar de fato os velhos nostálgicos, dando pouca importância a lore, respeito ou os próprios países que, como nós, abraçam os defensores de Atena.

No entanto, mesmo narrativamente, escolher os Estados Unidos é uma escolha equivocada e destinada ao erro em busca de uma adaptação vulcânica da saga. Isso porque, ao contrário do supracitado RRR, o blockbuster americano enfrenta uma onda criativamente perversa no âmbito audiovisual e textual. Com uma década e meia dominadas pela Marvel e o realismo iniciado com Nolan, o espaço para originalidade foi engolido por multiversos, conexões entre próximos capítulos e megalomania. A fantasia foi morta pelo cinzento do cotidiano que tenta traduzir o conceito mirabolante de heróis encapuzados que lançam poderes para um ideal de verossimilhança exaustivo e autofágico que agora, de fato, começa a dar seus sinais de esgotamento e reverberam um terreno desolado e dominado pelos live-actions da Disney, a bagunça da DC e a mesmice desértica da Marvel, todos num beco sem saída e com executivos sem saber o próximo passo.

Pois vejam bem, a natureza, an alma do anime shonen, o esquema de pirâmide que leva esta maravilhosa arte japonesa pelo mundo, em muito pouco tem a ver com realismo. Não que eu concorde em tudo nesse texto, mas ele dá uma ideia boa de algumas questões, ainda mais direcionadas a Saint Seiya. Deixando de lado o conceito de adolescentes se matando em armaduras de constelações, soltando poderes e falando de cosmos, a obra de Kurumada é totalmente aversa à realidade. Ela abraça o melodrama, o épico, a superação. Cavaleiros do Zodíaco, como Naruto, One Piece, Dragon Ball, clama pela catarse emocional que eu assisti em RRR, o filme indiano que não tem pudor em ser superlativo. As piruetas são surreais, as cores gritantes, o choro infame e as coreografias, circenses. E isso é empolgante, alucinógeno, contagiante. E isso é tudo que o cinema americano não permite hoje. E não podemos nem falar do egocentrismo deles em achar sua arte maior, já que as bilheterias de seus mamutes têm caído vertiginosamente. 

Desapegando de qualquer nostalgia, um valor inválido aqui pois o filme descarta o saudosismo e, como supracitado, busca apresentar novas gerações a Seiya e seus companheiros, o filme, se não ofensivo a um público novo, é inteiramente desinteressante e monótono, sem coerência interna e em conflito visual constante. As cenas iniciam numa réplica que se popularizou desde Aranhaverso, estilizada e de framerate acelerado, o que até chama atenção, mas logo a seguir temos uma cena de ação banal, mundana e que parece ter esquecido da técnica introduzida anteriormente. Aliás, as coregrafias físicas são o único alento que o filme traz como ação, já que quando vemos os cavaleiros em armaduras, o que deveria ser um momento épico e emotivo, até isso se perde, e vemos bonecos engessados, em imagens de contraste pobre, com armaduras monocolores e de pouca diferenciação em fundos destruídos e esfumaçados. Um suco do cinema americano blockbuster, se me permitem a redundância. 

A adaptação original de Saint Seiya foi o ápice criativo, visual e de popularidade da obra. Pode-se argumentar que Lost Canvas seja até superior, narrativamente falando, mas ela só foi consumida, justamente, por ávidos comprometidos com o material primário. Se ela não funcionou com algum público, dificilmente - e eu não vejo nenhuma alternativa - alguém ignorante ou indiferente se tornará interessado pela franquia, e desvirtuar tudo que a faz especial é tão somente uma tentativa patética que irá desagradar tanto quem ama a franquia quanto quem a desconhece - e quem odeia não irá sequer tentar. 

Assim, esse "O Começo" já surge como um fim, somente mais um episódio malsucedido da Toei em expandir sua mina de ouro, numa autossabotagem constante que evidencia como ninguém ali dentro parece ter entendido as razões do sucesso da obra de Kurumada em si. 

3 comentários:

  1. Belas palavras e pontos interessantes. Não vi o filme ainda, não sou grande fã de CdZ (mais porque meus pais não me deixavam ver na infância e depois nunca tive interesse suficiente em 'pegar pra ver'), odiei aquele filme animado, passei longe da versão da Netflix, mas quero ver essa bomba por pura curiosidade. Por um lado discordo da ideia de que não deveriam mais adaptar animes pros EUA, mas por outro tenho que concordar com muito o que foi citado. A forma como adaptam é errada e insistem no erro. Outra cultura. Eu também não faço ideia de como esse filme acabou saindo. Poucas obras dão certo, mas os caras erram até mesmo em produções mais realistas, vide Death Note, ou com premissas mais simples, vide aquele outro Godzilla 'antigo'.

    ResponderExcluir
  2. Agora fiquei pensando na ideia de adaptar uma obra pra outros países. Já tive pensamentos aleatórios do tipo "Imagina um Death Note ou um Gantz no Brasil?" [seria demais (rs)], mas nunca acreditei que pudessem fazer isso mesmo (em qualquer país que fosse) por motivos de: 'Estados Unidos são os maiorais e ditam o mercado'. O live-action japonês já tem seu público garantido, agora o americano sempre pode atrair algum desavisado que não consome mídia asiática (apesar de que no caso de Cavaleiros do Zodíaco ainda assim é algo bem nichado). Só reparar, por exemplo, como tem filmes de terror americanos que são remakes de japoneses (O Grito, O Chamado) e tem uma galera que nunca sequer viu os originais. O Death Note da Netflix deve ter atraído bastante gente também que nunca viu os japoneses e talvez nunca vá ver, seja por desinteresse, seja por puro preconceito. Ainda verei esse RRR. Faz um tempo que vi um filme indiano. Gosto de como viajam sem medo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Devem ficar no público asiático e manter as características pessoais de lá. É por isso que fez sucesso em outros países. Não entendo essa obsessão em querer adaptar pra outra língua. Tá certo que o americano médio tende a ser um burro arrogante, incapaz de ler legendas como o Bong brincou no Oscar. Mas eles nunca abraçaram a franquia e dificilmente saem do que é produzido no próprio território. Tão desgastando progressivamente a franquia e subestimando quem de fato vai consumi-la.

      Excluir