Assassinos da Lua das Flores (2023) - Crítica
O papel do cinema cada vez mais converge com aspectos sociais. Naturalmente sempre esteve presente, mas especialmente em âmbito americano, nunca esteve tão em voga e, talvez, podemos dizer até demanda do público. Podemos ver isso com ênfase nos ditos "pós-horrores", que se afastam, para o bem e para o mal, de uma objetividade de gênero. Isto ergue um novo problema narrativo, mas não é assunto para agora. A questão é que o público parece cada vez menos tolerar a ausência de comentários, diretos ou metafóricos, a assuntos de relevância pública. E isto, naturalmente, não resvala somente ao contemporâneo, e sim em episódios passados, menos ou mais esquecidos, que mais do que merecem, precisam ser relembrados. É o papel de dignificação e representatividade do cinema para com minorias que por tanto foram silenciadas.
O genocídio velado dos Osage na década de 20, quando ousaram desafiar a autoridade e exclusividade dos brancos ao dinheiro e poder, é a escolha do mestre Scorsese para desafiar um capítulo vergonhoso, essencial e basilar na história americana. Uma temática natural para um cineasta que tanto trabalhou os alicerces violentos e hipócritas por trás da formação dos Estados Unidos. Nisto, não somente o diretor busca uma reparação histórica, ao menos na memória, mas também reitera seu argumento anti-Marvel ao expandir o alcance narrativo do cinema. Sem precisar de piadinhas e desrespeito para lidar com um tema sério de forma sóbria, e isto enquanto mantém o entretenimento.
Pois parece que o cinema americano vive uma era de antagonismo. Ou um filme assume o vazio lúdico, ou se apoia unicamente nas intenções e alegorias para justificar uma pobreza técnica e narrativa. São poucos os realizadores que conseguem mesclar isto, quanto mais nas novas gerações. Podemos pegar nomes como Ari Aster, Robert Eggers. Mas Scorsese, no auge de seus 80 anos, preserva vitalidade e maestria sem deixar de se desafiar por trás de tanto repertório.
Isto pois seria fácil cair numa apropriação cultural ao abraçar tal assunto. No meio de tantas discussões sobre baixa representatividade e vários papeis de certos grupos sociais serem distribuídos para maiorias. Scorsese, então, mudou todo seu planejamento, reescrevendo o roteiro, que seria focado na investigação do recém-criado FBI sobre os assassinatos, para uma perspectiva das próprias vítimas, além de empregar vários nativos na produção e elenco do filme. Não deixa de ser algo obrigatório, mas nem sempre visto na indústria, quanto mais em alguém de tão velha guarda.
Numa trama que por muito ficou conhecida por ter sido a razão pela criação do FBI, e tão promovida por J. Edgar Hoover para isto, Scorsese usa 2/3 de seus 206 minutos sem sequer mencionar a agência ou transformar isto num longa do gênero investigativo. Mesmo com o protagonismo do personagem de DiCaprio, o centro gravitacional está em sua parceira, a Osage "pura" Mollie, vivida por Lily Gladstone. A atriz carrega em seus olhos e expressões todas as mudanças tonais desta tragédia americana. Do flerte divertido do início, dos anos de fartura, para a compleição exausta, desacreditada e consternada de quem tanto perdeu e não vê justiça ou esperança no horizonte.
Diferentemente do livro, onde a progressão do que sabemos se une ao da investigação, já iniciamos o filme conscientes dos "vilões" por traz da maquinação contra os Osage. Isso remove qualquer distração que viria deste fato e evidencia um dos grandes objetivos do diretor, que é expor a face do mal. Longe de maniqueísmos e caricaturas, mas pela polidez e simpatia de De Niro e a beleza ingênua de DiCaprio. Se transita no western e no drama com pitadas de romance e até humor, vemos uma epopeia da conquista do Oeste se tornar numa elegia, num quase-horror, ou uma espécie do que seria o pós-horror. A dessensibilização dos personagens enquanto comentam tantas atrocidades com a naturalidade de quem dialoga sobre esportes desafia a empatia do espectador.
É um exercício e uma missão ao próprio púbico, cada vez mais destreinado a narrativas longas, lentas e complexas. Uma pressa e desconexão que reflete na própria conexão humana, em que a exposição a um conto de tamanha falta de compaixão generalizada tem sido enfrentada com impaciência e frieza. Quando Scorsese quebra a quarta parede, ele desnuda a sociedade do espetáculo circense que foi construída ao redor do caso, tanto da autopromoção de Hoover e da "justiça" americana, mas também do público que consome e alimenta tal conteúdo.
Um epílogo em que alguém fez sua parte, mas não deixa de se encerrar com melancolia, indignação e desilusão. O cinema que não consegue fazer uma reparação retroativa, mas serve de documento histórico de um episódio tão triste enquanto também conversa com o que somos, ou nos tornamos hoje.
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