Duna: Parte Dois (2024) - Crítica

Há sempre um grande prejuízo quando você é um precursor de algo, mas acaba sendo diluído em referências famosas durante décadas até de fato conseguir uma oportunidade multimídia após o que você inspirou. Essa é uma consequência do sucesso, e uma causa para algum desinteresse ou críticas injustas. Muito dos elementos de Duna, narrativos e conceituais, serviram de inspiração para obras que marcaram a cultura pop como Blade Runner, Mad Max e, principal e especialmente, Star Wars. Mesmo sendo um livro cultuado, é fato que o cinema é uma arte mais acessível, destarte marcando mais profundamente o imaginário popular. Quando uma tentativa de trazer a obra para o cinema - uma sempre dita como inadaptável - é fracassada, parece enterrar a chance de Duna ganhar o reconhecimento popular de obras que ela própria influenciou.

Neste contexto, o desafio de Villeneuve, que assumiu o comando de adaptar o trabalho de Herbert para o cinema, é não somente fazer jus ao livro que ama, como o de reafirmar seu próprio talento para diferenciar, ampliar e justificar uma história complexa e já calcada na cultura pop. Confesso que a parte 1 de Duna me aborreceu com seu ritmo e a aridez estética do filme, um tanto polida e rígida, um ato que parecia mais de respeito e temor por algo que se ama do que o tesão de garantir uma personalidade própria para uma adaptação. Como supracitado, quando tantos de seus conceitos já foram replicados por outros, apenas mimetizar o texto ao audiovisual não parece uma boa alternativa para a atemporalidade. 

Com o universo já estabelecido com sua intrincada trama que diverge e posteriormente converge em temáticas políticas, ecológicas e sociais, miríade extensa de personagens e nomes, Villeneuve consegue, entretanto, explorar melhor não somente o universo e ideias de Duna, como desenvolver as próprias visões deste mundo nesta sequência, o que por si só engrandece o original. Aí como um autor expressando sua assinatura de algo, não somente a replicando. E como há argumentos para se examinar e refletir em Duna. 

Muitas coisas podem parecer o que não são, no micro e macrocosmo de Duna. Do genocídio e aniquilação disfarçados de convite para assumir o comando de Arrakis aos Atreídes à própria profecia messiânica que circula Paul desde que se depara com os Fremen, o texto de Herbert sempre mergulhou nas entrelinhas, nem sempre sutis, para operar. Por fora um épico fascinante e inovador, mas permeado de reflexões sobre fundamentalismo, tirania e o ouroboros que parece amaldiçoar nossa espécie nesse ciclo interminável de autofagia. O salvador fadado ao despotismo. 

Villeneuve, que esses dias defendeu o cinema como imagem e disse "odiar" diálogos, por mais equivocado que seja, ao menos expõe no próprio trabalho o que afirmou. Por vezes até caindo no pedantismo ou num vazio imagético que busca transmitir uma complexidade e meditação não construídos por suas tramas. Uma beleza estéril, por assim dizer. Senti isso no primeiro Duna, o que agora é corrigido justamente pela definição atmosférica que justifica tal caminho. E pelos olhos do protagonista Paul, vivido com maturidade e desencanto por Timothée Chalamet. 

Unir as duas partes como um único conto coloca em perspectiva um excelente estudo de personagem, deslocado de toda a trama, que é o jovem duque. Sua trágica e shakespereana história. Do adolescente ingênuo e arrogante, a um líder amargurado e consternado a uma vida de abdicação. A perda de tudo e de todos para uma vingança insatisfatória que nada mais faz do que continuar sua sina de isolamento. Se perdeu o pai e amigos pela morte, é ainda em vida que, por idolatria e escolhas burocráticas para garantir seu posto, sacrifica o amor que lhe restava. Uma elegia e analogia para a queda da humanidade que vai engolindo de dentro o personagem até a metamorfose completa num imperador não muito diferente do que o que aqui combate. Não há vilão que não acredite na própria convicção e razões. Mas isto é história para, espero, os capítulos seguintes. 

Duna, entretanto, é um cinema blockbuster, caro, e como tal, Villeneuve sabe que precisa garantir o entretenimento para reforçar suas discussões mais intimistas e abstratas. E como um épico, é impressionante a escala que o filme atinge quando em seu clímax. Impressionante na grandeza da própria destruição, o cineasta age como um artesão da tragédia, decorando a tela com uma virtude técnica indelével e que não deixa de evidenciar o horror da guerra e da morte, sem deixar de hipnotizar o público. Algo que, ainda que diegético, explica nossa fascinação por eventos catastróficos. Não deixa de soar, nisto, como um documentário distante, acima da ficção. 

E como documento histórico, Duna, como conjunto, se estabelece de imediato como um marco que transcende seu gênero e sim como um filme canônico a se assistir por suas ideias e sua escala. Uma maravilha do cinema blockbuster moderno e um exemplar categórico do poder da sétima arte tanto como veículo de encantamento quanto de manifestação de ideias. Um filme para se ver, ouvir e pensar com intensidade. 

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