Dossiê Gramado 2024 - O Clube das Mulheres de Negócios, Motel Destino e Cidade de Deus


Há uma sintonia nos primeiros projetos exibidos neste 53° Festival de Cinema de Gramado. Todos falam da marginalização. Da minoria. Da revolta. Da dor. Da paixão. Da obsessão. Mas também do amor. Da empatia. Da esperança. São filmes, afinal, que representam e espelham o cinema brasileiro. E dirigidos por uma mulher branca paulista ou dois diretores homens nordestinos, a sincronia temática é somente um detalhe em abordagens bem diferentes de se lidar com um contexto social em ebulição, parecendo sempre à mercê de uma explosão, permeados de desconforto mesmo nos momentos mais cândidos. 

Karim Aïnouz, Aly Muritiba e Anna Muylaert todos advém de contextos socioeconômicos e geográficos diferentes, e portanto, cada qual com sua formação e influências. É natural, portanto, esperar a abordagem diversificada, ainda que resvalando na mesma sensorialidade. Enquanto Anna busca na comédia satírica erigir uma perturbação em que o riso genuíno se transforma em constrangimento conforme as situações escalam em sua narrativa, Karim se refugia num motel que mais parece deslocado de nosso plano, existindo como um edifício Murakamiamo, uma toca do coelho para retratar o desespero humano numa situação limite e como sempre se encontra um refúgio, no amor ou no erotismo. A ambiguidade intrínseca dos personagens, naufragando entre arquétipos do bom e do mal, sem se encaixar plenamente em nenhum. Há nuances para todos os lados entre os corredores decrépitos do motel barato e o calor premente que permeia a paisagem por entre as luzes neon. 

Já Aly é mais restrito por retornar a um universo já visualizado por outros artistas, e muito calcado na realidade, buscando então na disposição literal trazer algum significado que não somente o monetário para o reencontro com Buscapé e todas as figuras, assim como novos personagens, do icônico longa de Fernando Meirelles. 

Porém, mesmo que mais amordaçado, até pelo envolvimento da MAX, entre a narração costumeira que interliga a série com o filme de Meirelles através da forma, o diretor busca trazer alguma autoralidade não-novelesca neste universo, fugindo dos estereótipos de favela que se proliferaram no audiovisual nacional justamente desde o Cidade de Deus original. A do ambiente quase como um caos urbano constante, desorganizado, perigoso e com corações bons tentando florescer em meio a um calabouço de perspectivas. Mais do que os próprios vizinhos, entretanto, tal restrição está justamente num sistema indiferente e corrupto que premia a violência e pune a sobrevivência. 

Sobrevivência que é uma palavra que bem pode definir quase todos os personagens em tela na trinca analisada aqui. Em Motel Destino, temos um jovem negro e sem futuro tentando encontrar algum, encontrando e oferecendo, ao mesmo tempo, refúgio e carinho a uma mulher presa num relacionamento tóxico e abusivo, ambos reféns de um homem branco e com pinta de sudestino, dando as cartas num Nordeste precário e seco. Um Fábio Assunção despojado, com shorts curtíssimos e uma camisa frequentemente aberta, impondo sua dominância étnica verbal, fisicamente, mentalmente e financeiramente como que de garantido, irresoluto na confiança de seu status como alfa, e por si só paranoico e selvagem quando de encontro à resistência. 

No filme de Muylaert, a sobrevivência deixa de ser uma metáfora para se tornar um jogo de gato e rato, com simbologias óbvias e divertidas que envolvem onças selvagens perseguindo as ricas mulheres que desfrutam de um clube burguês na capital paulista. A galhofa de suas atuações e até de efeitos questionáveis se entrelaçam com a sátira dos comentários afiados de Muylaert, que ganham muito corpo conforme se revelam suas intenções finais e tudo ganha um significado que poderia parecer óbvio, mas passa escondido até como um mea culpa. É um filme que escolhe uma métrica inicialmente leve e vai progredindo em meio ao caos para gerar ansiedade e aflição, desafiando a graça prévia no espectador, como que o convidando a assumir a condescendência perante um mal social e reconhecer tal absurdo. 

São diferentes Brasis em busca de, como muito disse aqui, esperança. Se mitologicamente e filosoficamente a esperança pode ser vista como um mal que nos faz persistir e insistir em causas perdidas, é também o combustível que evita o marasmo e o pior do niilismo. Sem ela, não há nada. É a esperança, nesses contextos, que torna possível amar, ajudar, se rebelar e lutar. É a quebra do açoite. 

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