Crítica - 14 Estações de Maria(2015).

14 Estações de Maria/Kreuzweg, dirigido por Dietrich Brüggemann

A despeito de minhas crenças religiosas pessoais, não tenho problema algum com pessoas doutrinadas e ativas no meio, assim como convivo tranquilamente com aqueles que possuem gostos artísticos e culturais avessos aos meus. Tolerância é essencial. Porém, quando levadas ao extremo, tornando-se prejudiciais tanto ao praticante quanto ao àqueles ao seu redor, é onde entra o perigo. E tratando-se do "vício" imponderado a algo, a religião pode ser tão danosa quanto drogas ilícitas. E é justamente isso que "14 Estações de Maria" procura expor.

Dividido em 14 capítulos nomeados seguindo a via-crúcis, logo em seu começo conhecemos Maria(Lea van Acken), uma garota de 14 anos que aparenta ser como qualquer outra, porém, logo aprendemos sua subserviência e desejo em entregar-se a Deus. Iniciando com um inteligente plano no qual o padre Weber(Florian Stetter) está no centro de uma mesa com vários alunos, o que ressalta sua autoridade, lembrando muito o quadro "A Última Ceia" de da Vinci, ele afirma que a menina, assim como as outras crianças presentes na sala, devem tornar-se "soldados de Jesus", passando sua palavra adiante, mesmo que para isso seja necessário o sacrífico da tortura e morte(exemplo citado pelo padre). Impressionada pelo eloquente e inflamado discurso, não é de se espantar que com um curioso exemplo desses, que a ingênua garota, devota aos princípios apresentados pelo ancião, subverta o desejo das palavras do mesmo, e assim, torna-se obsessa em agradar aquele que aprendeu ser seu salvador. Aliás, note como é interessante o fato deste segmento chamar-se "Jesus é Condenado à Morte".
Atuação marcante da jovem Lea van Acken


O problema é que a garota, obstinada em levar uma vida santa, passa a abnegar necessidades inatas de nossa condição terrestre, como proteger-se do frio, alimentar-se ou apreciar uma bela paisagem, tal qual privar-se de tais atos fosse a tornar mais pura. E então, assim como fora descrito nos textos bíblicos, Maria inicia o seu tortuoso caminho da cruz. Sua vida se transforma num verdadeiro calvário auto-infligido. A direção de Dietrich Brüggemann ressalta isso, mantendo a câmera estática o máximo possível, a movimentando apenas para acompanhar os atores, assim como mantém ângulos fechados, ressaltando a prisão que a menina vive ao buscar a divindade. A escolha do cineasta poderia enfastiar e ficar monótona com o tempo, mas apenas contribui para transmitir verossimilhança e tensão  nas cenas. O acerto na escolha é evidenciado no capítulo do confessionário, onde, por minutos, apenas vemos o rosto de Maria ao falar com o padre sobre seus pecados. Um momento que, apesar de encantar pela simples composição, entristece pelo que exibe. Uma bela criança que vive oprimida e em constante culpa por sentir os mais carnais e triviais desejos, ainda mais se considerada sua idade. A jovem Lea merece todos os elogios por sua composição, principalmente nesta tomada, toca focada em seu rosto. Ela exibe uma face reprimida tamanha a concessão que deve fazer para alcançar seus objetivos, assim como a voz, reprimida e censurada. Mesmo com a pouca idade, eclipsa o restante do elenco em sua complexidade.


O roteiro, escrito a quatro mãos por Dietrich Brüggemann Anna Brüggemann, é eficiente na sutileza qual apresenta as críticas aos absurdos que são as exigências impostas para seguir alguma doutrina religiosa. O texto jamais é expositivo e exagerado, mas qualquer ser sensato se indignará perante o que vemos através de Maria, ainda mais por serem fatos. Promovem o dito livre-arbítrio, mas a não ser que você vista uma batina, não há escrúpulo ou critério algum em incriminar ou taxar de "delinquentes" aqueles que assistem ou escutam obras consideradas demoníacas, mesmo que estas sejam inofensivas e apenas quem afirma tal alegação saiba o motivo de o estar fazendo.


Se não toca no polêmico tema da pedofilia(para saber mais, assista ao documentário Deliver Us From Evil e o longa Spotlight), a película explora a hipocrisia da Igreja pela mãe de Maria, interpretada com frieza deliberada por Franziska Weisz. A mulher, que leva uma vida estrita nos valores católicos, possui uma personalidade contraditória pelo que se espera de alguém que se propõe a uma existência tão virtuosa. Agressiva e colérica, jamais demonstra qualquer afeto ou carinho pela filha, ao passo que não demonstra hesitação nenhuma em julgá-la e a humilhar por seus atos, mesmo quando incabível. Ela não busca ensinar sua prole, mas sim tiranizá-la, tanto que Maria busca sempre consolo nos braços de Bernadette(Lucie Aron), a hóspede da casa.

Spoilers nos parágrafos subsequentes:

Por meio da figura materna, o texto discute sagazmente um tema pertinente no debate ciência x religião. No ápice da degradação física e psicológica de Maria, sua mãe contesta veementemente as palavras de um doutor, mesmo este sendo um especialista, mas não demonstra anseio nenhum ao permitir o padre introduzir a hóstia na boca de sua filha, mesmo esta desacordada, o que leva a um acesso na mesma. É trágico, e por isso até cômico, as expressões no rosto da mulher e do padre ao verem os médicos lidarem com a situação.

A resoluta dupla Brüggemann não mede esforços para ser impactante, fazendo desta uma película crua em sua relevância, assim como o primoroso "The Hunt". No final, ainda que tenha buscado a santificação através de uma existência ascese, confundindo sacrifício com suicídio, Maria era apenas uma pessoa comum, e como tal, sua via-crúcis se encerra na 14ª estação. Não há ressurreição. 


Nota 8.

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