Crítica - Macbeth(2015).
Macbeth: Ambição e Guerra/ Macbeth, dirigido por Justin Kurzel. |
Vários autores já foram considerados "inadaptáveis", como Tolkien, Thomas Pynchon e Shakespeare. A dificuldade em suas obras é que leva diretores mais audaciosos, buscando alavancar suas carreiras, encarar o desafio de levá-las para as telas. Às vezes dá certo, e às vezes não. O poeta britânico, dono de um catálogo denso e rico, é alvo constante de profissionais da sétima arte. Entre catástrofes e primazias, Kurosawa, Laurence Olivier, Kenneth Branagh, Orson Welles e agora, Justin Kurzel, são alguns dos poucos cineastas que conseguiram levar seus textos com um real conteúdo para as grandes salas.
Em certa parte do longa, Macbeth, completamente deturpado, fala "As coisas que começam mal, fortalecem-se pelo mal". Mas não foi assim que começou sua trágica história. Após bravamente vencer uma batalha, garantindo a vitória e o território para o Rei Duncan(Thewlis), Macbeth é congratulado e beneficiado pelo justo soberano com o título de duque, além de afirmar que seu maior pagamento é servir o rei. Um homem poderoso e leal, alguém ideal para se ter ao seu lado. O revés tem início ao ouvir a profecia de três bruxas de que seria, em algum ponto, rei. A simples sugestão de tal poder abala sua então inexorável fidelidade, tendo sua corrupção catapultada com o plano ardiloso da maquiavélica Lady Macbeth(Cotillard) para tomar o trono.
A partir daí, temos o começo do "mal". Em uma simples cena que se passa na manhã pós a morte de Rei Duncan, Macbeth é filmado tomando banho em uma lagoa, o que simboliza um renascimento. Porém, quem surge agora é outro ser, um homem perturbado, pernicioso e desumano, capaz de cometer um infanticídio bárbaro e covarde. Cego por ambição e cobiça desmedida, a degradação moral de Macbeth é estarrecedora e completa, tornando-o praticamente um demônio, o que assusta sua própria esposa, quem o incentivou primariamente. Sua transformação é desenvolvida e ressaltada por todos os aspectos do filme.
Macbeth é um personagem complexo e vigorosamente vivido por Michael Fassbender, |
O figurino acompanha todas suas transições, inicialmente dourada, o que exibe sua cobiça e desejo por domínio, passando por um branco vazio que expõe sua demência, para então o forrar de preto, quando nenhum resquício do velho Macbeth parece remanescer. A atuação visceral de Fassbender é essencial e eficiente em todas as facetas apresentadas pelo personagem, desde a hesitação inicial, passando pela deterioração mental, com os olhos sem vida e o cabelo desgrenhado, à aceitação de quem transformara-se, em um solilóquio onde afirma que todos os atos hediondos que provocará não mais teriam volta. Porém, Macbeth, apesar de ostentar uma coroa e um trono, jamais foi rei, e sim um escravo de si mesmo. As mesmas bruxas que previram que chegaria ao poder, também trouxeram a mensagem de que sua dinastia não teria continuidade, e sim que os filhos de Banquo(Paddie Considine), seu parceiro no campo de batalha, tornariam-se futuros reis. Com esse pensamento sempre impregnado em sua mente, o personagem de Fassbender não usufrui dos privilégios de um monarca, sem jamais demonstrar sentir regozijo algum de sua posição. A coroa apenas o levou a um estado de alienação, medo e devaneios constantes, a ser odiado por todos. Macbeth é absurdamente complexo, e transpô-lo para os cinemas de forma competente era de uma dificuldade tremenda, mas bem executada por diretor e ator.
A presença de Fassbender - assim como o óbvio foco no protagonista - é tão estrondosa, que acaba por eclipsar o restante do elenco. Marion Cottilard mostra suas virtudes nos curtos monólogos que apresenta, mas a própria atriz já deu provas maiores de seu talento inúmeras vezes. Entre os coadjuvantes, é do desconhecido Sean Harris(o geólogo punk de Prometheus) que vem a maior surpresa. O ator, nêmesis do protagonista, fornece credibilidade para seu personagem através dos olhares e expressões de fúria e indignação.
A Fotografia, além de linda, contribui para a narração. |
Justin Kurzel se sai bem na direção, compondo boas cenas de ação, mas por vezes abusando do slow motion sem um motivo aparente que não seja o estético. Seu maior mérito vai na construção de Macbeth, já que conforme sua personalidade definha, o personagem-título é filmado cada vez mais em locais escuros, assim como os súditos, o temendo, encarando-o de cabeça baixa e temerosos, em contraste com a idolatria apresentada quando é este coroado rei. E como supracitado, se Macbeth se assemelha ao demônio, com sua tirania insana, a fotografia de Adam Arkapaw(da temporada boa de True Detective) faz de tudo para transformar a Escócia num inferno(pelo menos a concepção ocidental deste). O clímax da fita é fotografada com um sufocante vermelho vivo que permeia por todo o quadro, servindo de plano de fundo para uma violenta batalha. Pode ser que falte aquele jorro de sangue que sempre agrega em lutas esteja faltando, mas a cor, originada por fogo, transmite a essência do sentimento que motiva a disputa entre os homens.
Com todas essas qualidades, é frustrante notar o quão perto a película passou de se tornar uma obra-prima, e sua fraqueza encontra-se no roteiro. Muitos relataram ser um filme para poucos, já que utiliza parágrafos completos da obra de Shakespeare em várias partes de seu todo, mas esse é um fator que em nada prejudica seu entendimento ou qualidade, apenas acrescenta um certo charme e elegância. O problema maior está em sua duração. E pela primeira vez em muitos anos me pego dizendo que um filme de quase duas horas poderia facilmente se estender por mais tempo sem afetar o ritmo, mas sim engrandecendo seu esmero. Com alguns minutos a mais, poderia-se esmiuçar melhor o repentino abandono de Macduff, e principalmente, dar mais tempo de tela para Marion, que foi tristemente desperdiçada, tanto que mesmo tendo seu carisma, o destino que a personagem toma pouco nos afeta, já que não conseguimos nos importar com ela, e isso se deve a fala de profundidade do texto, pois mesmo cometendo atos pútridos, um vilão bem escrito - e interpretado - torna-se magnético. As razões dos personagens são compreensíveis com a boa vontade do telespectador, mas explorar melhor sua psicologia incrementaria a veracidade dos acontecimentos, que são de suma relevância para o decorrer da trama.
Notável também é ver o final não traindo a plenitude da obra, como fez o último Jogos Vorazes. Seria fácil imaginar um encerramento melodramático que tentasse passar uma mensagem barata de autoajuda sobre o bem vencer o mal. Felizmente, Macbeth, assim como mostrou em seus 113 minutos, segue por outro lado, o da natureza perversa humana. Afinal, a morte de um opressor não significa o fim da opressão.
Nota 9.
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