Digimon Adventure Tri - Crítica
Imagine que você teve um grande amigo de infância. Ele veio de outra cidade, durante algum ano letivo, e no auge da inocência, quando ainda não temos preconceitos ou somos esbarrados por emoções, a amizade aflorou de modo que você podia chamá-lo de melhor amigo(a). Porém, tão rápido quanto veio, o nomadismo de sua família, por razões que nunca lhe chegaram, o tirou de você, deixando uma eterna boa lembrança tão grande quanto a lacuna de algo promissor interrompido. Ao fim, se torna uma memória carinhosa daquelas que revivemos sempre com saudades e fantasia.
Por reviravolta do universo, quando nem sabia que desejava isto, surge a oportunidade de reencontrar esta pessoa (ela te achou no facebook, sei lá). O contato foi breve e sob a perspectiva de reeditar, agora mais velhos, a parceria de antes, não há hesitação, apenas uma ansiedade desmedida destas que driblam a razão.
Chega o dia, você chega lá, coração palpitando, aí a pessoa chega. E você percebe, simplesmente, que se passaram uns bons anos, a vida de ambos mudou e você simplesmente não conhece esse estranho que se aproxima. A intimidade não acontece, a química é inexistente e tudo soa meio forçado, meio pretensioso, até que, depois de algumas horas (ou menos), você percebe que prefere ir embora e fugir desta situação desconfortável.
Esta é uma sensação generalizada entre os saudosistas que abraçaram com empolgação a nova aventura com a turma original de Digimon, e apesar de eu não concordar veementemente, a irei utilizar para descrever o que senti no apagar das luzes desta série de OVAs, pois Bokura no Mirai (Our Future/Nosso Futuro), que deveria ser o clímax catártico do reencontro, mas amplifica velhos vícios e confirma falhas que até então permitiam a dúvida da explicação futura. Bem, talvez haja um depois de Digimon Tri, mas como obra determinada, ele escorrega por entre expectativas.
É compreensível o caminho adotado pela Toei. Digimon é uma marca que, tal qual Beyblade e Yu-Gi-Oh, por exemplo, tiveram um auge em um arco específico, então saíram do radar ocidental, mas seguiram tendo novos produtos e, consequentemente, novos animes para manter a marca ativa e com merchandising a públicos-alvo. Porém, ao contrário Dragon Ball e Pokémon, são antologias que, normalmente, se isolam de temporadas anteriores em enredo e personagens, reintroduzindo tudo a cada era. Desta vez, no entanto, a abordagem foi focada nos fãs do anime primordial da franquia e que popularizou o significado Digimon em vários países, com grande peso aqui no Brasil e a geração que acompanhava as manhãs da Globo pelos idos de 2000.
Não à toa, o frenesi foi quase todo provocado pelos hoje jovens e adultos, que acompanharam o início do digimundo, uma década e meia envelhecidos; a escolha da staff, até sabiamente, foi oferecer aos protagonistas uma jornada temporal semelhante ao público - isto é, crescê-los, hoje alunos prestes a entrar na faculdade. Naturalmente, esta evolução vem não apenas cronologicamente, mas nas personalidades e relações da turma, que carregarão para sempre o passado, mas já possuem presentes distantes uns dos outros. A trama une os personagens tanto quanto nos une a eles, e apesar de serem criações fictícias, a impressão é tão palpável quanto um reencontro real, como descrita na introdução desta review.
O que parecia uma falta de familiaridade decorrente da pouca convivência atual entre eles, barreira que deveria ser quebrada pelo tempo, perdurou com um senso de estranheza e despertencimento, como se eles não quisessem realmente estar ali, impressão que também se estendeu aos Digimon, como se agora, com preocupações adultas, não tivessem tempo para distrações infantes, transformados em seres frios e insensíveis.
É uma fatalidade permitida pelos novos roteiristas, que menos do que entenderam a essência de Digimon Adventure, parecem ter lido aqueles resumos do estilo "Por que Digimon é melhor do que Pokémon" e acreditado com demasiada seriedade, já iniciando a primeira Ova com citação de Platão e uma presunção dialética juvenil saída de alguém que parece ter visto uns filmes de Truffaut, lido livros de Kafka e Dostoiévski sem saber muito bem como interpretar tudo, mas com a convicção de agora ser um intelectual.
Um diferencial da franquia (ao menos nas primeiras 4 temporadas, quais conferi) foi, sim, a densidade das camadas além do que parecia uma obra de lutinha de monstros - apesar de muitos desejarem apenas isto -, e uma revisita irá revelar, aos que nunca mais tiveram contato com a saga desde então, que havia uma tentativa de aprofundar e metaforizar a epopeia dos digiescolhidos além do superficial corriqueiro de shonens infanto-juvenis. Mas, não é porque passaram todos estes invernos que agora todo mundo exposto a Digimon Adventure teve sinapses interligadas em seu cérebro que impulsionaram a uma vida nobre e cognitivamente conspícua. E caso tivesse, Tri seria igualmente frustrante.
Conforme os episódios passaram, as atrições não encontraram resolução e ninguém parecia realmente se entender ou demonstrar camaradagem, com personagens como Joe e Mimi ignorados a níveis ridículos, uma nova personagem sem muita função além de lamentar ou exibir insegurança, e protagonistas (Tai e Matt) com crises de identidade e nem de longe a forte ligação ambivalente que os tornou os líderes de outrora - novamente, eles não parecem querer estar ali.
Com um norte que parecia nunca chegar, foi ficando difícil defender a existência de Digimon Tri, já que o foco em dramas rasos e desinteressantes deslocou a ação a um plano coadjuvante e que, quando mostrado, mostrou que o drama, na verdade, não era tão ruim assim, com uma animação injustificável e inferior a animes semanais com 50 e tantos episódios, enquanto Tri apresentava meses de separação para entregar um material tecnicamente precário, aquém mesmo das OVAs vistas no começo do milênio.
A ambição da história oferecia possibilidades de múltiplas teorias, com os digiescolhidos de Adventure Two desaparecidos, dimensões colidindo e reboots problemáticos, até que tudo se revelou um amálgama confuso, por vezes com resultados risíveis, e por outros simplesmente esquecidos, que deixam clara a ideia de uma continuação, mas que na contramão, falha em despertar nos fãs o anseio por uma nova empreitada.
Após seus 6 filmes, a sensação, então, é de voltar pra casa após reencontrar este saudoso amigo com o misto incerto da decepção com a esperança de que talvez da próxima vez funcione, mas sem realmente querer que haja uma próxima vez. Talvez seja melhor viver de lembranças.
Final esperava mais
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