O Rei Leão e a Atemporalidade


O que é atemporal? Sem pesquisar no dicionário, é algo que atravessa gerações incólume, mantendo seus valores atualizados e virtudes reconhecidas independente do tempo transcorrido. Não é simples realizar algo assim. Além do talento envolvido, se demanda também de generosas doses de sorte e visão por parte dos realizadores, que no período da produção, tiveram alguma sacada ou conveniência que permitiu decisões que persistem recentes ainda hoje.

A quantidade de anos desde o lançamento influencia mais na questão social do que no esmero técnico. Assim, se alguma abordagem era vista com naturalidade em certo período, hoje pode estar defasada, em totalidade ou fragmentos. Como boa parte do amálgama das animações de princesa da Disney no século passado. Cinderela e A Bela Adormecida para sempre serão clássicos obrigatórios na lista dum cinéfilo e fãs do gênero, mas hoje em dia a resolução de seus conflitos se personificar na figura de homens - sempre monarcas - é incompatível com a evolução que temos tanto em sociedade quanto individualmente. Para ressaltar isto, basta comparar com histórias feitas em nossa era de representatividade e emponderamento: Enrolados, Valente, Frozen e Moana (que sempre nega a alcunha de princesa, mas é usada no material comercial no mesmo selo), onde as personagens femininas traçam suas escolhas de modo independente, com posturas firmes e, não raramente, com mais serenidade e esperteza que figuras vistas, outrora, como a segurança masculina.

O mercado da arte é feito por e para pessoas, e obviamente, deve ser volúvel para com os princípios presentes. Cinderela e Aurora não têm culpa de serem frutos de uma idealização romântica que era parte do modus operandi de então, mas são exemplos e objetos de estudo das mudanças que estas décadas trouxeram. São excelentes filmes com elementos antiquados. Já outros, como Canção do Sul, são esquecidos e rejeitados pela própria empresa por seu caráter, desta vez em totalidade, potencialmente ofensivo e repulsivo.


No meio destes retratos, entretanto, a própria Disney, principalmente em sua primeira Golden Age (animações lançadas ainda durante a vida de Walt Disney), produziu inúmeros clássicos atemporais que, à exceção de técnicas rudimentares que estranharão crianças crescidas já na era do CGI, soarão sempre atraentes e universais: Bambi, O Livro da Selva, Pinóquio, Alice no País das Maravilhas e 101 Dálmatas são todos prévios à década de 70, e mesmo assim, estão sempre entre as prioridades da Disney em relançamentos de mídias físicas, integrantes naturais e seletos do filtro temporal, que anula algumas propriedades e permite a outras fazerem parte do desenvolvimento de novas crianças, mesmo que estas já tenham obras surgidas simultaneamente à sua formação disponíveis.

Neste aspecto, talvez, a Disney Renaissance, ou Renascimento da Disney, que compreende os anos de 1989 à 1999, seja o berço mais icônico e abrangente do que é ser atemporal. Foram nestes anos que a empresa se reestruturou comercial e ideologicamente, quando novos animadores finalmente fizeram jus ao legado dos Nove Anciões, nos brindando com clássicos imediatos como A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Mulan, Tarzan, e seu epítomo, O Rei Leão.

Estes filmes, apesar de terem sido lançados num ínterim que compreende somente uma fase geracional, se estabeleceram no imaginário popular com uma força que não se desgasta, sendo referência em todo o cenário mesmo com o advento e popularização do 3D - vemos ainda hoje seus efeitos, com adaptações live-action rendendo acima do bilhão. Os adultos que se solidificam no centro criativo de empresas como a Disney, hoje, muitas vezes cresceram assistindo estas fábulas, perpetuando sua imagem e transmitindo o legado a novos nascidos. Por exemplo, eu mostrei todos eles a meu irmão - ainda que ele seja prole de um novo período dourado da animação, especialmente, da própria casa do Mickey Mouse, que hoje habita no que é chamado de seu Revival, após nova entressafra trôpega na transição da década passada.


Um deles, entretanto, atingiu um pico superior aos outros. A Pequena Sereia, com todas as honras de ser precursor da revolução, enfrenta o dilema de Ariel, que abdicou de tudo e optou por virar humana em prol do amor. A Bela e a Fera, curiosamente, se vê encruzilhada num público imberbe, quando garotinhos ainda desdenham o que parece ser um conto destinado ao feminino. Tarzan e Mulan são amados, mas surgidos no final do Renascimento, flertaram com o esgotamento e o interesse focado no material da Pixar. A Aladdin, faltou vigor para catapultar a fama com a mesma chama por tanto tempo, para rivalizar com os rivais contemporâneos. Prevaleceu na nostalgia, mas não marcou novas gerações com tanta ênfase.

No meio de Frozen, Como Treinar seu Dragão, Big Hero 6, Zootopia, continuações bilionárias de franquias adoradas, nenhuma animação 2D perdurou sua realeza como o verdadeiro soberano de todos, O Rei Leão. Voltando lá no começo dos anos 90, é engraçado notar sua trajetória: de segunda opção e relegada ao "Time B", à maior bilheteria de uma animação tradicional da história do cinema, maior número de vendas no home video e um culto persistente que atravessa o saudosismo de quem foi atingido pelo impacto súbito ao lançamento. Não. Bebês nasceram após 94, continuam nascendo, dã, e O Rei Leão permanece como um nome influente e reverenciado por muitos.

No site Ranker, que ranqueia listas avulsas, o vindouro live-action de O Rei Leão, por exemplo, conta com 248 votos a mais que Dumbo e 836 (!!!) a mais que Aladdin entre os filmes mais esperados de 2019. Curiosamente, também é quem mais recebeu downvotes, um reflexo natural de seu status imponente, pois muitos temem "arruinar" sua infância mexendo no que é, em sua mente, perfeito - uma atitude que já se repetiu e se repetirá muito em anúncios de sequências inesperadas à futuras adaptações (o de Mulan tem sofrido muitas críticas e sugestões de boicote ao revelar que não contará com parte das canções originais, Mushu e Capitão Shang).



Produzido à rabeira de Pocahontas, a quem posteriormente suplantou impiedosamente em críticas, bilheteria e fama, O Rei Leão foi visto, vejam só, como obsoleto e anacrônico pelos cabeças da Disney à época. A empresa havia reencontrado o glamour com musicais retratando humanos. Para que voltar a apostar em animais antropomorfizados, algo tão "Anos 50"?

28 anos depois, Rei Leão tem melhor média e maior número de votantes no IMDB que qualquer concorrente do mesmo estúdio (não considera-se a Pixar, portanto). A peça da Broadway segue um hit imparável. Por que O Rei Leão se tornou referência e atemporal?

Porque mais do que seus personagens, sua trilha sonora ou seu design, O Rei Leão é uma confluência de fatores, que incluem, aí, talento, é claro, mas também sorte e visão.

O talento, para adaptarem tantas referências e inspirações num mote norteado corretamente. A sorte que permitiu que James Earl Jones e Whoopi Goldberg dessem, respectivamente, voz a Mufasa e Shenzi, após desencontros de Sean Connery e Tommy Chong, primeiras opções. E a visão da escolha por trás de nomes como Hans Zimmer e Elton John para o projeto, assim como o alemão, de trazer Lebo M, que posteriormente seria responsável pela histórica introdução, Circle of Life.

De vez em quando, aliás, as circunstâncias são tão fortuitas na conclusão de algo que beira o sobrenatural. O Rei Leão, portanto, é um destes casos. Não apenas pelo já mencionado fato de ser tratado como coadjuvante pela Disney, mas também ao vermos que seus dois diretores, estreantes em longas metragens, Roger Allers e Rob Minkoff, jamais voltaram a criar algo minimamente equivalente. Isto talvez poderia sugerir que profissionais de outras áreas tenham tido maior influência no resultado final. Mas é algo improvável, pois os diretores são, essencialmente, quem apresentam a opinião central para a condução de filmes - em tese, em casos de blockbusters, atrás apenas do produtor na palavra final. O mais provável é, mesmo, que ambos tenham tido momentos de genialidade quando envolvidos com a fita, e somente ali.



Mesmo que a tecnologia nos brinde, futuramente, com algo ainda mais detalhado e lindo que a neve de Frozen, a água de Moana ou a textura dos tecidos de Os Incríveis 2, O Rei Leão definitivamente seguirá contextualmente eterno e relevante. O que permite isto, primeiramente e, também, o mais importante, está no esmero de sua história, sem a qual nenhum fundamento poderia consertar ou compensar. Sua trama não está inserida em um movimento específico que defina uma época, mas sim em mensagens globais, "ageracionais" e, portanto, intertemporais.

"(...) o passado pode doer. Mas do jeito que eu vejo, você pode fugir dele, ou...aprender com ele." Diz Rafiki a Simba, após golpear este, que expressava como estava a fugir de si mesmo e quem era. O Mandril rapidamente tenta repetir a paulada, mas dessa vez, o leão desvia, e então toma o bastão do sábio.

Talvez esta descrição exponha bem a intenção do roteiro, muito além do divertimento. Muito além de um caso isolado; cenas, diálogos e pequenas minúcias similares a esta permeiam todo o conjunto cinematográfico que forma o clássico. O Rei Leão segue o essencial para não se perder na impiedosa camada de poeira que encoberta o passado. Ele não é uma obra vazia. É destinado aos pequenos, mas não os subestima nem ignora os acompanhantes adultos. Oferece conteúdo a ambos; ao jovem que irá rir com Timão e Pumba, e também ao velho que irá pegar o pessimismo rancoroso de Zazu com um sorriso culposo de reconhecimento.

Se adota mais explicitamente analogias ao Kimba de Tezuka e a Hamlet de Shakespeare, os responsáveis não cometeram o erro do plágio, mas sim utilizaram do esqueleto pronto para individualizar seu próprio corpo.



Quando você cresce, para sustentar a nostalgia, é necessário enxergar mais camadas para absorver. E com isto, Rei Leão enriquece a si próprio conforme as temporadas avançam. Por trás de toda a grandiosidade de O Ciclo Sem Fim, há uma discussão basicamente zen sobre equilíbrio e a efemeridade cíclica da vida, onde pai e filho, com forte ligação emocional, brincam, mas também conversam sobre morte e transição, onde nada é eterno, mas tudo se repete.

Muitas vezes se despreza a importância de roteiros que abordam temáticas complexas. Principalmente quando somos adolescentes ou solitários que ainda desconhecem a responsabilidade por outra vida. Soa como demagogia, palavras vazias. E apesar de eu ainda me enquadrar no grupo dos que só precisam cuidar de si mesmos, alguns textos e um pouco de empatia abriram o escopo de que cenas como a ousada e lúgubre morte de Mufasa possibilitam reflexões necessárias, assim ofertando espaço para um papo aberto e entendível aos pequenos.

Neste texto, por exemplo, o autor conta como foi com o filme que ele explicou o conceito de morte para sua filhinha. Já aqui, é comentado sobre uma carta recebida no estúdio após o lançamento nos cinemas, de um pai viúvo que explicou a seus dois filhos onde sua mãe estava usando O Rei Leão como exemplo. São assuntos problemáticos, mas que não devem ser tratados como tabu, e usar de um catalisador que facilite a amostragem é um privilégio e oportunidade que auxiliam tanto o criador quanto a criança. Deve ser aproveitado.

O próprio compositor do filme, Hans Zimmer, reforça esta ideia, ao dizer que só aceitou participar no filme, numa idade em que nutria antipatia e estereótipos infantis em relação à animações, quando percebeu a complexidade do roteiro e se identificou com ele, além de permitir levar sua filha ao cinema conferir um trabalho seu.


Mas muito além apenas da emblemática morte do Rei, a derrota do bem perante o mal, O Rei Leão não é monotemático ou de brilho único, pois toda a jornada de Simba está cercada de ensinamentos que atingem qualquer classe social e religião. A despeito de ser da linhagem real, não é sua posição que o confere responsabilidade, pois como Mufasa diz, "Um rei não faz somente o que gosta", e, mais importante, quando Simba estava perdido e se afastando de si mesmo, no lema do Hakuna Matata, o antológico e emocionante:

"Você esqueceu quem você é e esqueceu de mim. Olhe para dentro de você. Você é muito mais do que pensa que é. Você tem de ocupar seu lugar no ciclo da vida. Lembre-se de quem você é."

Mais do que um mantra militar, é um conselho que demanda repetições e uma análise que leve à prática, não somente a magnificação com a impressionante cena. Simba não é mais do que pensa que é por ser um rei brincando de Hippie, nem por ser um carnívoro dominante, mas pelo potencial inerente ao indivíduo de ter um objetivo e capacidade de ancançá-lo. Isto pode causar más-interpretações também com o significado da alegre Hakuna Matata. Timão e Pumba vivem na bonança, atraindo Simba para a filosofia, em escapismo constante para afugentar a realidade de seu passado.

Não é exatamente uma mensagem motivacional. E a aparição de Mufasa nas nuvens, no que me é muito claramente uma metáfora mais lúdica e acessível do que a voz interna do próprio Simba diz, sugere exatamente, com o que fora previamente apresentado no filme, o equilíbrio do ciclo da vida, como sociedade e como pessoa. Simba não está errado em se divertir e brincar, mas em negar sua própria identidade e pensamentos por medo, por temer assumir seu posto e lutar pelo que é seu de direito; pelo que acha correto.



Quando somos crianças, sem senso crítico e noção do mundo, nos cativamos e impactamos mais facilmente. Porém, o que difere a interpretação e durabilidade de nossa relação com obras como Rei Leão e um desenho como Hotel Transilvânia ou Bob Esponja está nas suas camadas, que se revelam de acordo com a experiência de quem o assiste.

Mas dito tudo isto, se você passou a curtir O Rei Leão quando era um mirim inconsequente, muito pouco provável que tenha sido pela representatividade mundana e profundidade de seus temas, mas sim porque achou irado, maneiro, grudento e engraçado. E Rei Leão é tudo isso, de todas as maneiras possíveis.

A começar, naturalmente, por quem nos deve conduzir pela história idealizada pelos roteiristas. Um fator primordial, mas que se equivocado, sabota todos os acertos restantes, afinal, quem aguenta um anfitrião irritante e supérfluo? Penso em Eren, de Shingeki no Kyojin, e Jar Jar Binks, como exemplares extremos de como infestar negativamente toda uma obra. É bacana como a degustabilidade dos personagens de Lion King não se suplanta numa fama incompatível, sem destoar da própria fita - como Marie, de Aristogatas, ou Olaf, que abocanharam uma marca própria. Cinematograficamente, isto serve bem a fins de imersão, quando você não vê um núcleo desejando que outro arco retorne. Igualmente, se há tempos em tela distintos, há um desenvolvimento suficiente para que todas as figuras aticem algum interesse e revelem traços de seu comportamento. Mesmo Timão e Pumba, sidekicks tradicionalmente cômicos, recebem um trato extra-risos.

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Gosto muito de usar Scar como exemplo da força dos personagens. Se seu visual é, já à primeira vista, maquiavélico (reparem que ele é o único leão do longa que sempre mostra as unhas, o que já denota sua índole perniciosa), ao menos sua persona é talhada de modo que ele seja tão magnético quanto os mocinhos - isto não nos faz torcer culposamente para seu êxito, mas sim que seu destino e movimentos sejam concebíveis e recheados de curiosidade. Parte importante deste cuidado está na dublagem sedutora e gutural, tanto por Jeremy Irons, no original, quanto por Jorgeh Ramos, na versão nacional. É um antagonista ardiloso e repugnante, mas tremendamente carismático, e assim como Hitler, em seu discurso inflamado, cativa um séquito numeroso - as hienas, em alusão clara ao império nazista no número "Se Preparem". Scar possui uma personalidade, não é apenas um vilão unidimensional estepe para o crescimento do protagonista. E o mesmo se equivale a Simba, Zazu, Nala e tantos outros, o que permite, se não a identificação, a compreensão de suas ações, e logo, o envolvimento emocional, seja ele positivo ou negativo.

Se os personagens não se sobressaem à narrativa, entretanto, há um fator que o faz - só que este de modo positivo, ganhando vida própria sem desvincular sua identidade à do filme, e sim um complemento que carrega seu espírito no som, na própria ausência de imagem. Se a Disney tornou-se mestra em musicais naquela década, o auge se deu justamente na savana africana. Enquanto produções como A Pequena Sereia, Aladdin e Hércules apresentam duas ou três canções que estão entre as mais acessadas no Youtube, o Rei Leão é um hinário imprescindível e irrepreensível em todas suas faixas, para todos os gostos, e que avançam a história concomitante às exibições. O início já é inapelável na não-diegética "Circle of Life", e no restante da duração acompanhamos Simba crescer através de "O Quero Mais é Ser Rei", "Hakuna Matata" e "Hoje a Noite o Amor Chegou". Não em vão, foram três indicações ao Oscar de canção original (Can You Feel The Love Tonight venceu), além de honrar o trabalho incidental de Hans Zimmer, que recebe menos espaço, mas entrega um rendimento dos melhores de sua carreira, creditado somente em quatro das doze faixas contidas na trilha original, mas todas sublimes. O grande segredo está, para Lebo M, em manter uma identidade africana na sonoridade.



E é isto que difere o bom do excelente. Por vezes, pensamos num filme com boa trama. Em outras, numa trilha sonora impactante. Às vezes, num personagem que temos carinho, ou então numa mensagem memorável. O Rei Leão, entretanto, oferece tudo isso com desenvoltura e deferência. E o seu superior são, na verdade, todos nós.

Muitos vieram, vêm ou virão. Apenas os grandes ficam. E O Rei Leão é um deles.

2 comentários:

  1. Eu assistir o Rei Leão pela primeira vez em 2010 quando tinha 12 anos. É um dos meus filmes favoritos.
    Uma das simbologias que me traz mais nostalgia ainda é a música Can You Feel The Love Tonight do Elton John.

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