A Favorita (2018) - Crítica


Yorgos Lanthimos não tem uma visão muito positiva da humanidade. A cada filme seu, aliás, por mais que difiram na história contada, a única semelhança esta justamente nos extremos inescrupulosos que qualquer pessoa é capaz de alcançar para atingir seus objetivos. Tanto faz se é numa família mantida reclusa pelo pai, numa sociedade que pune a solidão ou que parece aparentemente estável - nas camadas a se explorar, cada indivíduo esconde a própria depravação. No universo de Lanthimos, o egoísmo, o niilismo e a crueldade sempre perdurarão perante o amor, o otimismo e a benevolência. O grego é o anti-Spielberg.

Baseado livremente em alguns anos do reinado da Rainha Ana da Grã-Bretanha, A Favorita, no entanto, é o primeiro longa do cineasta que não é escrito por ele ou seu parceiro, Efthymis Filippou. Ao final dos créditos, entretanto, fica óbvio o interesse que Yorgos depositou na obra, a ponto de sacrificar os créditos de escritor. Pois o texto, com autoria de Deborah Davis e Tony McNamara, compartilha a podridão intrínseca ao ser que é tradicional ao diretor.

Assim, mesmo que não assine o roteiro, Yorgos, que possui pulso forte e técnicas singulares, impõe tranquilamente sua assinatura ideológica e profissional na película, de modo que ela inda possa ser considerada um trabalho de autor.

Tal qual seus outros projetos, apesar de possuir um contexto calcado na realidade - ou livremente adaptado -, The Favourite, no original, dispersa os acontecimentos históricos e foca a narrativa nas personagens, mais como Maria Antonieta fez com a figura titular e Amadeus com Mozart, do que filmes centrados em eventos, como Apollo 13 ou as várias adaptações Arthurianas que tivemos por aí.


O que Lanthimos reconhece é que as pessoas definem os acontecidos, e não o contrário. Portanto, por mais que saibamos da guerra premente entre Inglaterra e França e pesquisamos sobre os feitos do reinado de Anne, como a unificação com a Escócia e o fim da Guerra da Sucessão Espanhola, estes são fatos tão coadjuvantes quanto as cortinas e janelas do palácio, submetidos ao descaso da soberana. É mais importante a ela - consequentemente, a nós - satisfazermos seus desejos e enfrentarmos suas dores - numa narrativa que ainda nos colocará de encontro com as suas Favoritas, Lady Sarah Churchill (Rachel Weisz) e Abigail Hill (Emma Stone), numa tríade impecável através do talento das atrizes.

Ao não dividir os pontos de vista, e sim misturar todas as perspectivas de acordo com a situação, A Favorita equilibra o tempo em tela das três personagens, definindo o protagonismo de Olivia Colman ao torná-la o verdadeiro evento do enredo, já que as outras figuras agem de acordo com a Rainha, em direção a ela, mesmo que visando os próprios alvos. É sua existência que move a trama.

Nas quase duas horas de duração, então, Lanthimos jorra sua visão bifurcada e deteriorada da condição humana, situando o mesmo caráter insignificante numa época distante - logo mais o cineasta deve se engajar num longa pré-histórico onde nossos antepassados se digladiavam pelo direito à vida -, o que generaliza seu desprezo e fascinação pela própria espécie.


Tão sádico quanto as personagens, Yorgos parece inclusive tirar sarro com nossa cara ao nos fazer simpatizar, vez ou outra, por pena ou compaixão, com alguma das mulheres, mostradas frequentemente em momentos de fragilidade para, logo em seguida, as retratar fazendo ou dizendo algo mesquinho e que revela sua verdadeira natureza. Neste jogo, ele brinca tanto com o público quanto as Favoritas consigo mesmas, ao atestar nossa subversão doentia em se associar ao mal e negligenciar sua perversidade.

Somos cativados pelos expressivos olhos de Emma ou então perdoamos Rachel após todo seu expurgo, quando elas próprias não demonstram uma real fraqueza, e sim pisam nos misericordiosos assim que possível. Abigail faz do flerte uma demonstração mórbida de controle. Sarah transforma qualquer diálogo num confronto, e cada frase sua carrega uma lâmina afiada.

"Você é boa demais para seu próprio bem", conta Sarah a uma falsa ingênua Abigail, em certo ponto. Com isso, a intenção e a interpretação narrativa ficam esclarecidas: não há espaço para bondade, e a perfídia é a constante.


Abigail e Sarah toleram e paparicam Anne pois esta é quem pode lhes conceder poder. A Rainha, porém, é menos inocente e nem um pouco vítima disto, pois sabe das artimanhas das duas e usa de sua posição para conseguir favores e aliviar a própria depressão - seu marido, que cronologicamente estaria vivo, jamais é mencionado, o que ressalta seu afastamento emocional, enquanto também carrega o trauma da morte de vários filhos.

Não há pureza ou mártires em A Favorita. Fotografados por Robbie Ryan em luz natural e grandes angulares que distorcem o cenário assim como são as personagens, todos os indivíduos representam o pior de si mesmos, faltando-lhes somente a chance de revelar a própria face - o que surge naturalmente. É o fatídico e trágico destino da humanidade: se autodestruir. Yorgos aceita isso com cinismo, tornando tudo numa paródia - mas não da burguesia, como comum no gênero, e sim de cada ente. A sua situação social e financeira apenas altera o modo e alcance da própria ambição, não o instinto primitivo que o controla.

Ao fim, são todos coelhos, enjaulados na própria ignorância, presos em seus desejos. À espera do abate.

Nota 9.

Um comentário:

  1. Eu gostei muito desse filme, pois quando vi o Trailer pensei que seria um filme de época, porém puxado para algo mais humorístico com criticas voltados para a burguesia, e por isso fui ver o filme somente pq amo a Emma, mas o filme conseguiu me surpreender e eu acabei gostando muito dele.
    E adorei seu texto o modo como você analisou as personagens, e falou sobre Yorgos a qual não tenho conhecimento, mas já fiquei interessado em ver outros filmes.

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