Por Que as Mudanças no Live-action de Mulan São Necessárias?


Reclamar é o hábito favorito das pessoas. Esta não é uma frase sábia ou inovadora. Muitos de vocês já devem ter pensando ou a dito em voz alta. Porém, é uma conclusão que tenho e afirmo aqui, agora.

Quando a Disney passou a apostar em adaptações live-action de seus clássicos animados, a repercussão mais comum era de indignação. "Pra quê?", "Vão estragar minha infância", e outras derivações disto. Tudo chegou a um novo patamar com Aladdin, que hoje é sucesso absoluto de bilheteria com uma renda estável há dois meses nos EUA, feito raro na predação que são os lançamentos de blockbusters aglomerados atualmente, com mais de $900 milhões já arrecadados. Porém, pelo que se via e lia durante a divulgação do longa, previa-se o caos.

Basicamente, toda a atenção se deu, primeiramente, ao fato do gênio de Will Smith não estar azul nas imagens reveladas. Uma blasfêmia, já que traia o "material original". Então, a Disney liberou o primeiro trailer, desta vez com o gênio azul. E aí passaram a chamar de esquisito ou falso demais. Desconsiderando, completamente, o fato de que gênios não existem, e a liberdade criativa dos profissionais responsáveis pela adaptação, que não tinham obrigação nenhuma de somente recriar o desenho cena-a-cena (o que, aliás, seria enfadonho, vide o Cinderela de Kenneth Branagh, bonito, porém já obsoleto e pouco imaginativo, satisfeito em somente transportar a mesma história). Vale lembrar que nenhum dos live-actions lançados até agora, a começar por Alice no Pais das Maravilhas, passando por Malévola, Mogli, Dumbo e A Bela e a Fera, são histórias originais da Disney. A empresa é, sim, responsável pela disseminação das obras mundialmente, o que de certa forma interligou estes contos ao Mickey, mas são, todos estes casos, assim como os vindouros A Pequena Sereia, Mulan, e os inevitáveis Tarzan e Hércules, livros, poemas ou lendas antigas e de diferentes culturas. O que a Disney fez, sabiamente, foi torná-las mais acessíveis para um público jovem, com a magia narrativa característica do estúdio. É um mérito inegável e que vem de décadas sem se perder.


Porém, não é como se estas animações fossem completamente fieis. E por uma infinidade de fatores, como as diferentes culturas, o risco comercial, ingenuidade dos realizadores e as mudanças temporais, nem sempre estas obras, por mais adoradas que sejam, não precisam, nem devem, ser as mesmas hoje do que foram décadas atrás. Mais do que uma simples adaptação com atores em carne e osso (ou animais realistas em CGI), é uma chance de recontar estas histórias fantásticas por uma nova roupagem, buscando justamente melhorar o resultado, consertando o que fora prejudicial antes, e inserindo novos elementos que busquem enriquecer a trama, almejando adequar aos novos tempos - como feito em Aladdin, que deu um papel mais central e imponente para Jasmine, em congruência com a ascensão do feminismo e os movimentos por igualdade na indústria.

O Cinema, como a arte, são reflexos de seu tempo. E se contentar em somente seguir os passos de filmes antigos, por melhores que sejam, já é nascer velho. E ao contrário de Benjamin Button, sem rejuvenescer com a idade. É encarar o esquecimento imediato.

E esta longa introdução já serve para preparar o terreno para o tema do post, que são as mudanças anunciadas no aguardado live-action de Mulan, que não será um musical, nem contará com o carismático dragão Mushu, substituído por uma fênix. E a chance de ver um cara lindo e sarado como Shang? Nops.

De súbito, é claro que a internet foi em polvorosa com estas revelações. Qual seria o propósito de se fazer um live-action de Mulan sem as inesquecíveis canções (como assim não vou poder cantar Homem Ser?) nem o adorável e divertido Mushu? É uma descaracterização completa do que funciona na animação, e logo, sabota a própria qualidade. Só que não.


O ponto mais básico já fora afirmado. O live-action de Mulan será, inteligentemente, uma adaptação da história de Hua Mulan, o poema ancestral chinês, e não necessariamente a animação do estúdio - que, hei, já é completamente descaracterizada da realidade.

Não pretendo soar hipócrita. Inicialmente, também me mostrei receoso com estas decisões. Mulan é um poema tradicional chinês, e naturalmente, por ser de domínio público, existem diversos filmes "em carne e osso" que contam sua história, principalmente chineses, é claro, no tom sóbrio, factível e brutal da verdadeira história. O que difere o longa da Disney são justamente suas características fantásticas, ou seja, as liberdades criativas tomadas para deixar a trama mais degustável aos pequenos. As músicas épicas e o charme de Mushu e do grilo da sorte. Não é uma fita apegada ao realismo. Foi um jogo de mercado da Disney, mas menos uma forma de atrair o mercado chinês, e mais o de contar uma história de uma nação misteriosa para o Ocidente. Ou seja, neste processo, muito dos detalhes e peculiaridades da cultura chinesa são omitidos ou alterados, pois não são compreendidos neste lado do mundo.

Como era uma época sem popularização da internet, é claro que aqui ninguém deu bola pra isso, no que os chineses pensavam sobre a obra, e como eram mostrados na animação. Nem mesmo os produtores devem ter pensado muito nisso. Mulan é um filme politizado e bem-intencionado, sim, e um dos primeiros da Disney a enfatizar uma personagem forte e que confronta o patriarcado como status quo, tornando Mulan um símbolo e um exemplo a ser seguido. Porém, além da superfície, o filme mostra problemas severos justamente na forma como retrata a cultura em que se passa, e é por isto que este live-action surge como fundamental - isto sem apagar ou anular a existência da animação, que estará sempre lá aos fãs, o mesmo que vale para A Pequena Sereia e os ignóbeis que não aceitam uma protagonista negra.


Com o primeiro teaser, divulgado neste domingo, minhas dúvidas deram lugar a esperança e maravilhamento. Claro, eu seguro a expectativa pois já cansei de ser enganado por trailers magníficos para produções medíocres. Porém, é difícil não se empolgar com a beleza dos detalhes e da profundidade que parece emanar da história, num tom que difere da animação, e mesmo assim se mantém incrível. Foi quando pensei que eu realmente deveria abraçar estas mudanças, e que elas deveriam ter algum motivo. E então, usando da rede global de computadores e seus privilégios, passei a procurar o outro lado da moeda: o que os chineses acharam da animação de Mulan, e foi quando tudo fez sentido.

Pois ao contrário de nós, pelo que se encontra na web - numa generalização que pode parecer conveniente, mas que expressa um pensamento lógico e que, a considerar a baixíssima bilheteria da animação na terra do Mao Tsé, representa boa parte da população que se dá ao trabalho de raciocinar sobre uma película infantil adaptando um poema nacional.

Primeiramente, a questão de Mushu. O Dragão é a principal entidade mitológica chinesa, um símbolo de força, nobreza, beleza, inteligência e qualquer adjetivo que você queira para você mesmo. O Dragão é uma criatura sagrada, presente inclusive no mito de criação do povo Chinês, e cujas figuras adornam o país inteiro, em reverência e orgulho. Qual o problema do pequeno guru de Mulan, então? Bem, o problema está exatamente em sua representação. O povo chinês, por mais moderno que seja, ainda é muito conservador, apegado a tradições e de respeito aos costumes locais. E Mushu, em sua visão, é uma piada que ofende a representatividade sagrada do "bicho", justamente pela personalidade engraçadinha e atrapalhada que nos agrada aqui, que rebaixa suas virtudes divinas. Para eles, não há graça em pegar o principal símbolo nacional e o transformar em alívio cômico - artifício gritante já na escolha de Eddie Murphy como dublador. Em uma palavra, é desrespeitoso.


O próprio nome de Mushu, que faz referência a um prato sino-americano, deixa claro como o Dragão do filme é de uma visão completamente Ocidental da coisa, deixando a situação toda baseada em estereótipo, e vergonhosa a olhos chineses.

Mas e as músicas? Bem, uma das maiores diversões em assistir Mulan é cantá-las junto aos personagens. Então pra que tirar do live-action? É uma escolha obviamente narrativa. Músicas performadas em tela norteiam o tom da película, a deixando fabulesca e desapegada da realidade, enquanto a intenção do live-action é, claramente, a de mostrar uma história identificável e verossímil de uma mulher que desafiou sua sociedade para honrar a própria família e provar seu valor. Eu tenho certeza que o filme terá, sim, humor, mas não desleixado e cartunesco como da animação, dando enfoque para a trajetória inigualável e corajosa de Mulan, que no poema original, passou doze anos disfarçada como homem no exército, onde chegou a liderar um batalhão - e não alguns meses ou semanas, como pensávamos.

Outro aspecto é o galante Shang. Esta, pra mim, é a alteração mais óbvia e justificada mesmo sem procurar o ponto de vista chinês. A presença de Shang, no original, é quase contraditória perante a mensagem do filme, e um fato que expõe a questão de que a animação é, por mas feminista que seja, dirigida por dois homens brancos, progressistas, mas cegos a questões que somente mulheres entenderiam bem. Mulan é uma personagem forte, determinada e astuta que desafia a ordem e se coloca em risco de vida, num ambiente hostil, para resguardar seu envelhecido pai e salvar sua nação. O reconhecimento de seus talentos e suas conquistas já seriam recompensa o suficiente. Mas a narrativa romântica e obsoleta dos anos noventa ainda inseriu, como que obrigatoriamente, um par para ela, num homem "idealizado", forte e disciplinado, como se ela precisasse daquilo para atingir a satisfação própria - uma visão, novamente, para agradar o público americano/Ocidental, acostumado a finais que juntam casais, já que o comandante não está presente no poema original.

O que basta para Mulan, afinal, é ser Mulan. Não se nega sua valentia e tudo que simboliza na quebra de paradigmas na animação, mas o poema original, mesmo escrito numa China arcaica e ainda mais patriarcal que a de hoje, reforça ainda mais a figura imponente e confiável da moça. Enquanto na animação ela foge para se juntar ao exército, nos textos, já versada em artes-marciais por seu próprio pai, recebe a permissão de substituí-lo no fronte ao ganhar um desafio de lança, arma qual o chefe da família era especialista.


Por último, mas não menos importante, está no "orientalismo" do filme, um termo pejorativo para cunhar uma visão estereotipada do Oriente perante o Ocidente, em escolhas que refletem a ingenuidade e "preguiça" dos realizadores com a fidelidade e acuidade moral, étnica e cultura da história. São detalhes que passam despercebidos por nós, mas que não fogem ao olho de quem vive - ou não - aquele contexto. Falo de características pontuais e não necessariamente ditas do filme, como as roupas e penteados de Mulan, que se inspiram não somente na cultura chinesa, como também a japonesa, o que talvez tenha parecido "genial" na época, mas que hoje é, de grosso modo, racista, como a velha alegação de que "todo asiático é igual", algo infelizmente ainda visto em demasia nas redes sociais. Seria o mesmo que um longa japonês misturar comportamentos de toda a América Latina - não que já não tenha visto isto em animes, mas um equívoco não permite o outro.

O cinema é volúvel, e não uma barreira estática de concreto. É como água, se adapta. Assim como a mentalidade que revoluciona os tempos. E nisto, as mudanças provocadas pela Disney são necessárias, bem-vindas e não, não estragarão nenhuma infância, como somente apresentarão novas gerações com uma história universal - desta vez, ao que tudo indica, respeitando a cultura que se insere.

Mulan, a animação, seguirá para sempre lá, como é. Com seus defeitos e qualidades, Mushu, Shang e a trilha sonora intocada. Porém, a lenda de Mulan é muito maior do que uma ideia, do que um pensamento. É uma atitude que transcende o tempo, servindo de inspiração a intermináveis pessoas. E como tal, deve sempre estar em evolução. Porém, isto não significa rejeitar a própria cultura. Não é militância, é reparação histórica. Todo mundo tem o direito de se identificar com suas heroínas, independente da cor de pele e de onde nasceu.

Bibliografia:

How Is Disney’s Mulan Perceived in China?
Disney magic fails 'Mulan' in China; Cultures
Orientalism found in Mulan
Is Disney's Mulan racist or offensive to Chinese people?
Thread no Reddit 
How is Disney's Mulan perceived in China? 
Mulan: the White Feminist

3 comentários:

  1. Sinceramente eu estava muito preocupado em saber como seria a história do Filme em Live-Action, pois querendo ou não a gente fica mais sensível quando mudam algo que a gente gosta, falaram que não teria os Unos e a vilã seria uma bruxa que iria sequestrar a irmã da Mulan e um monte de coisa, mas depois desse Trailer eu fiquei mais de boas em relação ao filme, então estou bem curioso para saber como ele vai ser e se eu não gostar vai ser como você mesmo escreveu, sempre terá a versão original pra gente vê.
    Adorei o texto gosto deles grandes e bem aprofundados <3

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    1. Olá Tengu. Muito obrigado pelo elogio e mais um comentário ^^

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  2. Mulan é um clássico. Simples assim, darei minha opinião sincera. Mulan é uma animação quebrando padrões existentes em todas animações de sua época, não temos um príncipe encantado, perfeição dos personagens ou história fraca. É a história de uma garota meio atrapalhada que deseja fazer escolhas próprias, viver uma vida que escolheu para si. Essa garota muito mais que dilema pessoal, passa por um dilema de identidade, quem é ela mesma? Sabendo disso, começarei minhas discordâncias.
    Mushu é um dragão que precisa encontrar seu caminho, ele está mais perdido do que Mulan. Não quer desonrar a família, precisa desesperadamente de redenção, Mushu precisa de perdão. Mushu precisa encontrar quem é tanto quanto o ela, é uma jornada que ele precisa seguir. A família em forma espiritual que hostiliza Mushu está constantemente vigiando suas falhas, ele não é perfeito. O povo chinês tem a preocupante sensação de que falhar é uma desonra, uma vergonha para toda a família.
    Shang é o homem idealizado, forte e disciplinado que ousava acreditar ser o melhor de todos. Cheio de preconceitos, presunções e certezas que são todas quebradas por causa de Mulan, que muda completamente a visão de mundo dele. Ela destrói o mundo idealizado, a maior prova que ela dá para Shang é que com nossas imperfeições nós podemos ser tão fortes quanto os mais "perfeitos" homens na terra. Em um país onde mulheres foram e são submissas, sem quase direito de escolha e vivem para sua família.
    As músicas realmente tiram o tom de realismo, mas elas são importantes porque explicitam de forma majestosa acontecimentos chaves da história, é um dos mais belos desenhos musicais já feitos. A cena de Mulan cantando reflection é primorosa, uma autodescoberta das mais geniais já feitas. Elas dão o senso para tudo dentro da história.
    Não condeno a direção do filme por mudança, mas sabendo o quanto a história da animação conta de maneira primorosa aspectos importantes da china com simbolismos claros, uma garota que tem um "dever" dado pela família escolhendo viver a vida por ela mesma, um dragão que não precisa ser máquina de perfeição que simboliza uma nação sempre buscando ser perfeito, um guerreiro asiático idealizado quebrando por alguém provar todo o contrário de suas ideias, músicas que ajudam a elevar o nível de profundidade da narrativa, é grande perda perder tudo isso. Mulan no trailer parece apenas uma máquina de combate, é um teaser, veremos mais e pode melhorar, mas não vejo problema de uma mulher atrapalhada, divertida ou inocente tornar-se a maior guerreira que a china já viu, a história é sobre Mulan, uma garota que descobriu que podia ser muito mais do que pensava.

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