O Rei Leão; Majestade Sem Coroa - Crítica


Qual o papel de um remake? O termo, a simples modo, significa uma regravação de algo. Logo, o objetivo não é alterar a história original, mas sim recontá-la com novos recursos e inserir elementos que enriqueçam e atualizem a história. É importante não confundir com reboots, obviamente, que aí são visões bem diferentes utilizando personagens conhecidos.

Desde Alice no País das Maravilhas, quando a Disney descobriu que investir na nostalgia de seus títulos animados poderia ser tão rentável, não definiu-se nenhuma convenção de como tocar na fragilidade do saudosismo. No medo de ofender um público corrosivo e memórias afetivas, mesmo quando escolhidos realizadores cheios de personalidade para comandar as produções, pouco se modificou nestes live-actions, que transitam entre uma verdadeira colagem preguiçosa dos clássicos, como Cinderela, e explorações um pouco mais ousadas, que tentam oferecer um pouco mais do que somente apoiar-se em sentimentalismo do passado - como Malévola e A Bela e a Fera. De todo modo, poucos destes longas se justificam fora a avidez financeira. Este temor que torna as animações intocáveis prejudica o potencial cinematográfico e o verdadeiro valor de trazer para uma nova era e público histórias que se imortalizaram, mas que se encontram, muitas vezes, engessadas na visão de mundo de seu lançamento; estas temáticas que podem e devem ser revistas para conversarem e se tornarem referências para as crianças de hoje. E o receio da Disney em fazer isto é o que relega muitos desses live-actions ao esquecimento imediato, o que em efeito domino afeta cada release subsequente.


O Rei Leão talvez seja o principal expoente simbólico do estúdio para a geração viva hoje, grande parte dos que compõem o principal núcleo social consumidor, a geração millenial ou posterior que cresceu traumatizada pela morte de Mufasa no final dos anos noventa e começo do milênio. Logo, o anúncio de sua filmagem num live-action nem tão live assim causou alvoroço, mas também empolgação. Os primeiros trailers investiram em imagens que conversam com nosso emocional infantil. Porém, o que foi postergado o máximo possível foram as interações e closes demorados nos bichos, o que conferia uma problemática curiosa: como fazer um filme todo em CGI com animais que eram humanizados na animação, mas que dessa vez precisam expressar e demonstrar emoções sem quebrar o realismo visual da proposta.

Quando começaram a sair clipes e trailers estendidos revelando a estética e composição dos animais, foi que a expectativa sofreu o baque devido ao estranhamento de ver criaturas que são, sim, um esmero tecnológico, biologicamente perfeitos - mas isto também configura a questão de dificultar uma história pouco natural ou crível de animais que cantam, são psicologicamente complexos e nos devem fazer sensibilizar e sentir empatia por suas trajetórias. É por isto, imagino, que mais do que qualquer predecessor, Jon Favreau e a equipe de marketing tenham calcado a mão excessivamente na nostalgia, mais uma vez trocando as mãos pelas pernas, já que em vídeos segmentados, o estranhamento é muito mais alarmante e saltante aos olhos do que na continuidade do filme em si - ainda que ela esteja lá.

Digo isto pois a aparente sem vida sequência musical da Hakuna Matata solta no twitter ou as fotos que parecem obras de taxidermia não soam bem assim quando vistos costurados num conjunto completo. Pelo enfoque nestas críticas, este foi meu maior receio ao ir na sala conferir ao longa, o que foi rapidamente dizimado pelo maravilhamento de ver a revolucionária tecnologia fotorrealista que basicamente recria a savana africana em um blockbuster Hollywoodiano, o que, em certos ângulos, parece a trilha do Rei Leão inserida num enxerto documental do NatGeo, mas que contundentemente, conquista e não é robótico como esperado. Timão e Pumba seguem tão carismáticos e divertidos como sempre - e ouço dizer que a dublagem de Seth Rogen serve mais ao javali que a de Ernie Sabella. Já o Simba leãozinho-realista é até mais adorável, pelas próprias características, que o impertinente rebelde original, apesar de que há uma evidente deficiência em cenas que exigiriam extrema emoção, como nas reações de Simba perante o corpo inerte do pai. O trabalho de voz do pequeno JD McCrary projeta toda a dor e desespero do filhote, porém os closes de Favreau não acompanham perfeitamente os tons vocais - o que torna a escolha do diretor um tanto quanto esquisita, como se estivesse mais interessado em exibir a pirotecnia do que os sentimentos, o que desvia o foco da cena.


Erros como este são repetidos, mas esquecidos conforme a duração corre, como se Jon tivesse percebido ou finalmente aceitado a limitação da escolha que fizeram para a narrativa após a ter abusado anteriormente. Porém, a trama Shakesperiana e a grandiosa trilha sonora de Hans Zimmer, com as vozes confiáveis e épicas de Lebo M e Beyoncé ainda carregam o filme pela força do roteiro original - e aí entra um novo obstáculo, que fora discutido na introdução. O maior defeito deste Rei Leão não está em sua tecnologia, mas em sua covardia em assumir riscos. Para um diretor que caçoou dos grandes estúdios no independente "Chef", Favreau parece bem conformado nas restrições de seguir à risca o coming of age de Simba, do nascimento a redenção, incrementando em trinta minutos a duração somente estendendo cenas conhecidas para pavonear os exuberantes feitos técnicos da produção, maravilhado no próprio envolvimento naquilo. Assim, criativamente, é uma produção vazia, e a escolha do diretor se deve somente pela experiência adquirida em O Livro da Selva, e não em sua capacidade artística.

Neste aspecto, O Rei Leão de 2019 é como um display caro de um evento nerd. Um protótipo para o futuro - ou não. Nem toda tecnologia revolucionária é abraçada, como Peter Jackson provou com seus 48 frames por segundo. Porém, direcionar as críticas ao trabalho técnico é menosprezar e sepultar uma forma de contar histórias que tem muito mais a oferecer. O maior revés de O Rei Leão, mesmo, está nas suas amarras ao amado clássico dos anos noventa. Se eu quisesse ver aquela história como é, sempre terei aquela versão. O mesmo que serve para quem apedreja as mudanças de A Pequena Sereia e Mulan. Logo, fora o show pirotécnico, há pouca serventia criativa na existência deste filme, o condenando a ficar reconhecido como o remake live-action do Rei Leão que parece um documentário, quando poderia, e deveria, ser muito mais.

Nem Beyoncé salva.

Nota 6.

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