O Existencialismo de Woody em Toy Story


Poucas relações são tão equivocadas ou tolas quanto as que interligam animações com infantilidade. Quer dizer, existem, sim, filmes do gênero que são mais direcionadas a um público imberbe - apesar de que raramente estes não possuem algo a dizer, por mais fúteis que sejam, vide o recente Pets 2. Porém, películas dedicadas aos mais novos não se resumem a longas animados. Quanto mais quando uma técnica de ponta exige tamanho investimento, no que resultaria em suicídio comercial dedicar uma produção caríssima destinada a um público incapaz de custear ingresso e rentabilizar o estúdio.

Não. Já é há décadas que os responsáveis por animações utilizam do cenário do zero permitido por seu gênero não para infantilizar o próprio universo, mas sim para enriquecer as fórmulas de se contar histórias, através de personagens, cenários e ferramentes inovadoras e visualmente fascinantes. Seja no perfeccionismo conservador do Studio Ghibli ou a bilionária Pixar, os filmes jamais se conformam em apenas fazer rir ou conquistar os olhos menos aguçados, como se esforçam para transmitir conhecimentos, parábolas e ensinamentos que perpetuem além da sala de exibição, em menor ou maior êxito. Assim, por mais que fitas como Minions e Hotel Transilvânia manchem a reputação das animações e reforçam um estereótipo falso, é simples o exercício de buscar melhor conteúdo na demografia. Tanto quanto live-actions, onde temos besteiras como o recente MIB dividindo terreno com filmes esplendorosos e robustos como Dor e Glória e Deslembro. A amostra, como sempre, é dúbia. Cabe ao telespectador escolher o que deseja consumir. E a Pixar, novamente, nos traz um trabalho brilhante, inquietante e profundo no novo Toy Story.

Discutivelmente o estúdio Ocidental que mais valoriza o que faz, a Pixar já deu suas mancadas - e dará outras no futuro, não há dúvidas -, mas toda produção sua possui um nítido esforço para dizer algo, não somente fazer rir. E dentre tantas histórias belíssimas, nenhuma recebeu mais dedicação e carinho que a franquia de Toy Story. O conceito dos brinquedos vivos revolucionou a indústria na metade dos anos noventa, mas o que permitiu que seus personagens continuassem a encantar diferentes gerações mais de vinte anos do primeiro filme, transcende questões técnicas e alcança valores espirituais e comunicativos de acordo com a época de seu lançamento, evoluindo junto com o cinema e o mundo, como toda boa arte. Assim, cada longa é uma narrativa de seu tempo. Um estudo de época. E mesmo não sendo tão brilhante quanto Divertida Mente, épico quanto Procurando Nemo ou sensível como UP, os quatro Toy Story são o melhor espécime do estúdio para se estudar as mudanças sociais e as intenções por trás da Pixar, já que diferentes mentes criativas abraçaram e comandaram Woody, Buzz e companhia, sempre expandindo seu universo, mas sem jamais abandonar a essência central. E esta essência é muito mais complexa e analítica do que se vê na superfície. Muito mais do que um filme para crianças. Mas também para elas.


No recente lançamento de Toy Story 4, o protagonista da saga, o Cowboy Woody, dublado com energia e carisma por Tom Hanks, tem de encarar a própria obsolescência ao ser deixado de lado por Bonnie, sua nova "criança", ou seja, dona, a qual deveria se dedicar e fazer feliz, também sendo feliz, ao ser brincado - ou seja, ter alguma utilidade, um propósito. Woody, que no primeiro Toy Story era o rei do pedaço, a estrela no quarto de Andy, o maioral e líder do grupo. Naquela aventura, há vinte e quatro anos, é justamente ao ver sua posição de destaque sob a ameaça do moderno e interessante Buzz Lightear que a trama se desenrola, quando Woody, ciumento e possesso, derruba o patrulheiro espacial pela janela, o colocando em risco de "vida", e é obrigado a enfrentar a própria moral, mesmo que a contragosto, para salvar o companheiro que, afinal, é importante para Andy, a quem Woody ama e se sentia na obrigação de agradar. Logo, sua vontade é preterida pela de seu humano, mesmo que este não lhe reconheça como ser consciente ou igual. É uma relação comparável a de um crente perante Deus. Adoração e subserviência.

Passadas mais de duas décadas, porém, o comportamento de Woody ao se ver em coadjuvância é outro. Apesar de se mostrar melancólico com o aparente abandono e resvalar em velhos maneirismos, Woody respeita as ordens hierárquicas da nova casa, cujo papel de líder é de outro brinquedo, assim como toda a narrativa parte da dedicação do Cowboy em convencer o Garfinho, construído por Bonnie na solidão da creche como amuleto e parceiro, a se reconhecer como brinquedo e assumir o papel para qual fora criado - e de onde adquiriu vida, mesmo que não se considere, imediatamente, um brinquedo, e sim um lixo, numa gag hilária, mas também cheia de significado.


Na filosofia de Sartre, o existencialismo, de qual não é idealizador, mas o principal pensador e responsável pela mais aceita e disseminada tese sobre, é a maldição da liberdade do homem. Em suas palavras: "(O Homem é ) Condenado porque não criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.

Para ele, a existência precede a essência, então é nosso exercício mundano, como pessoas, que define de fato quem somos, e não Deus. Somos responsáveis por nossos atos e nosso destino, por isso mesmo a utilização do termo "condenado", pois somos açoitados pela ideia da liberdade e, até a libertação, incapazes de lidar com ela, e por isso atribuímos escolhas e consequências a uma figura divina onipotente ou então a ideias abstratas como o destino.

Para o Existencialismo de Sartre, consequentemente, como ente livre, o homem deve dar um sentido a sua própria vida e assumir dignamente o papel da própria existência, o que o difere da visão geral do niilismo (a desconsiderar todas suas vertentes), por exemplo, que adota uma visão mais indiferente desta falta de propósito de nossa vida. O homem deve achar o próprio propósito, e isto sem abraçar o eudemonismo egoísta - ou seja, sem prejudicar e soterrar toda a sociedade para atingir seus desejos. Naturalmente, assim se compreende uma responsabilidade social do homem para com seus semelhantes, seguindo a visão de Aristóteles de que o objetivo maior é, afinal, fazer o bem.


Essa verborrágica e redundante descrição para deixar claro como o atual Woody, o de Toy Story 4, se mostra um existencialista, num processo narrativo de mais de duas décadas e que se evidencia a cada filme com a nítida evolução do personagem, privilegiado por um character development exemplar e que merece ser estudado em cursos de cinema e roteiro.

Se o anti-existencialismo é um homem que relega sua existência ao outro, ao divino, o Woody dos primeiros Toy Story, e até boa parte deste quarto capítulo, é um boneco que, por mais proativo que seja, não vive por si mesmo, e sim para um dono. Ele não cria o próprio objetivo, como simplesmente aceita e se relega ao papel que deve ter como brinquedo. Nunca foi desejo da Pixar contar como os bonecos ganharam vida e a consciência do que são e para que servem. Mas desde o primeiro filme é mostrado este contexto, em que eles sabem que não devem ser vistos por humanos - a regra que é quebrada por Woody para salvar Buzz de Sid -, e que são objetos de crianças cujo propósito é ser brincado. Os brinquedos de Andy são como insetos ou filhos de pais de determinada profissão que jamais contestam seu papel, o aceitam e agem de um modo quase instintivo, determinados e resolutos em suas tarefas.


Woody nunca parece questionar isso, e sua única vontade, no primeiro filme, é ser o astro principal, o favorito de Andy - e a chegada de Buzz, que coloca isso em jogo, atiça uma personalidade tóxica e egoísta escondida no âmago do Cowboy, que só é superada justamente para preservar a própria moral entre os outros brinquedos, e obviamente para não entristecer seu dono. A mitologia e o universo de Toy Story não são explorados muito além daquele nicho, de modo que somente podemos imaginar como seria em outras situações. A primeira teoria é, obviamente, de que este cenário se repete em todo quarto, escola ou qualquer local com brinquedos. Porém, o segundo filme desenvolve uma nova perspectiva, que é o de brinquedos vintage usados como peças de museu. Apesar de rapidamente seduzido pela própria importância, quando percebe um valor próprio que parecia nunca ter sequer imaginado, Woody descarta a ideia e faz de tudo para voltar a Andy e levar novos companheiros - neste exercício, mostrando sua devoção e paixão à "profissão" de brinquedo, convencendo uma amargurada Jesse a dar uma nova chance ao amor de um humano. De abraçar seu papel.

Completamente mudado, em Toy Story 3 temos uma nova visão, desta vez mais dramática e reflexiva do papel destes brinquedos. Pois pela primeira vez somos confrontados com sua ideia de morte. Se não envelhecem, a única possibilidade de terem um fim é na destruição, num caminho que dificilmente chega sem dor e bastante angústia - algo sugerido na linda cena em que, de mãos dadas, os brinquedos parecem aceitar seu fado rumo à incineração.

Neste terceiro capítulo, Woody vive o dilema moral e existencial de dar adeus a Andy. Por mais de uma década, eles sempre nutriram a esperança do rapaz, agora um jovem rumo à faculdade, voltar a brincar com eles, o que naturalmente não vem. E somente Jesse, entre o grupo, enfrentou algo parecido. É somente ao aceitar a impermanência da vida que Woody se conforma com a doação e uma nova busca por fazer uma nova criança feliz - Bonnie -, um aprendizado que veio ao ouvir Andy dizer para a própria mãe, hesitante em liberá-lo para a faculdade sozinho, que ela já havia feito tudo para ele, e agora era a vez do antigo dono de Buzz e cia traça seu caminho. Percebem o paralelo entre o humano e Woody?


Entretanto, o próprio Cowboy não percebe a relação de imediato, e curte mais alguns anos na casa de Bonnie, quando finalmente iniciamos Toy Story 4 e temos a situação mencionada no começo do texto, refletindo novos tempos, em que nosso protagonista enfrenta o próprio ostracismo.

O que deixa óbvio como este arco só foi pensado anos depois da então trilogia ser dada como encerrada - o que não é uma crítica, mas um elogio à capacidade dos roteiristas amarrarem tão brilhantemente as histórias para que pareçam planejadas desde o início - é como um rápido flashback mostra o que aconteceu com Betty para contextualizar o norte deste novo capítulo da agora tetralogia. É engraçado pensar que, originalmente, Toy Story só teve continuação pois a Disney insistia numa sequência, e John Lasseter assumiu as rédeas para garantir autonomia criativa e qualidade para o segundo filme, que não fora idealizada dentro da própria Pixar. E considerando o longo hiato, é visível que o terceiro longa também fora "acidente" mental do clube imaginativo do estúdio.


A princípio, o arco narrativo de Woody parece estar estabelecido. Ele evoluiu enormemente desde o primeiro filme, e para evidenciar isto, temos sua reação completamente diferente ao se ver numa situação similar ao começo da história, quando se vê substituído por outro brinquedo - desta vez, ainda mais radicalmente, já que nem sai do armário de Bonnie, relegado ao pó com bonecos antigos da garota. Como supracitado, Woody possui sentimentos e fica entristecido pelo ocorrido, mas ao invés da carranca amarrada de antes, de ficar desgostoso e até com postura negativa e fechada, ele vê o que os outros brinquedos não conseguem - que é o desafio de Bonnie e sua relutância em deixar a casa dos pais para começar a frequentar uma escola. Seu amor por crianças e pelo próprio papel o levam a atitudes ousadas e de pura devoção e maturidade para garantir o bem-estar da menina, mesmo que ela não demonstre nenhum afeto para com ele.

E aqui entra a grande problemática deste comportamento ultra-altruísta de Woody para com Andy, e agora Bonnie. Apesar de bonito, é um caminho de final previsível e inevitável - o esquecimento. Esta dedicação aos outros somente o levará a uma frustração, cedo ou tarde. E considerando o que conhecemos dos brinquedos, eles possuem sentimentos análogo aos humanos - vide o Buzz deprimido de Toy Story 1 e o Garfinho assustado e inseguro. Logo, é possível crer que em um ponto, perdido neste ciclo, Woody entraria em um buraco psicológico por jamais encontrar continuidade ou responsividade em seu amor.


Aí entra o contraponto em Betty, que desde que fora doada, passou por experiências empíricas que a fizeram adotar uma vida "selvagem" e nômade, de completo desapego. Claro que a mensagem mais superficial e clara é a do feminismo, em que a outrora donzela em perigo renega qualquer papel esperado de si e revela uma personalidade forte, autônoma e aguerrida, inclusive com uma cicatriz de batalha no braço. Seu amor com Woody sempre fora sugerido, e o olhar e sorriso que ambos trocam não esconde um sentimento de admiração mútuo. Porém, apesar de se reencontrarem, a diferença entre eles no filme acaba os colocando, invariavelmente, em choque ideológico, o que poderia gerar novo rompimento, não fosse a intenção final e mais profunda do roteiro finalmente revelada no diálogo de Buzz, que dá o apoio necessário para que seu amigo Woody finalmente dê seu trabalho aos outros finalmente encerrado - com glórias e um histórico inabalável. Para, então, finalmente abraçar um propósito encontrado durante a vida; não somente o amor de Betty, mas a ação de salvar outros brinquedos e ajudar que estes trilhem seu próprio caminho. Que tenham o mesmo privilégio que ele.

O mais belo deste discurso está no equilíbrio e na consciência com que não há julgamentos ou contradições em sua expressão. Woody não fora infeliz em seu papel anterior, senão não faria sentido ele agora virar um salvador que leva novos brinquedos para crianças - justamente o que nosso Cowboy deixou de lado. O personagem vivido por Tom Hanks somente chegou a um novo estágio, uma nova etapa de sua vida. E tudo que veio anteriormente serve de aprendizado. Ele reconhece isso, e dá tempo ao tempo para que cada um ache seu próprio objetivo. Faz o bem para si mesmo, e para a sociedade.

Mais existencialista que isso, impossível.

Ao Infinito e Além para a Pixar e seu brilhante time criativo!

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