Era Uma Vez em... Hollywood; Uma Ode (Alucinada) ao Cinema - Crítica


A frase "Era Uma Vez" é a maneira mais clássica de se iniciar a história de uma fábula. Contos de fada recheados de magia e, costumeiramente, desapegados da realidade. Penetrada no imaginário popular há séculos, o termo tem origem na literatura europeia e atravessou gerações para, até hoje, simbolizar um romantismo fantástico em se abordar contos, chegando, neste 2019, na mente do cineasta cinéfilo, Quentin Tarantino.

Apesar do cinema ser, como disse Godard, a fraude mais bonita do mundo, é uma condição que assinamos com gosto no contrato quando procuramos um filme. Nós gostamos de ser enganados, mesmo quando vemos narrativas que se dizem "inspiradas em fatos reais". A realidade cinematográfica é moldável e adaptável até mesmo para se mostrar acontecimentos verídicos do mundo, pois afinal, mesmo o mais apegado ao crível roteiro precisa preencher tempo com diálogos que jamais saberemos se realmente aconteceram.

Tarantino, talvez, seja o diretor que melhor compreendeu este conceito; em como amamos conhecer mais sobre o mundo, mas não necessariamente do modo cinza, inerte e sem graça da realidade. E a arte que o gênio por trás de tantas pérolas dominou justamente por fazer parte deste público, é a que mais nos permite viajar pela história sem perder a imersão que os filmes permitem. Quentin já havia testado - e comprovado magnificamente - isto com Bastardos Inglórios, quando o Império Nazista teve seu fim justamente na Igreja de qualquer cinéfilo: o cinema. Pois a realidade morre ali. E, se quisermos, o horror também.

Não fora tão surpreendente, então, quando Tarantino revelou que seu novo projeto iria retratar a "Família Manson" e o assassinato de Sharon Tate, uma tragédia tão definidora e marcante em Hollywood, que passara descartada pelos estúdios até agora, por mais fascinante que fosse o ocorrido. No silêncio, como escreveu Joan Didion, o episódio foi um sepultar nos ácidos anos sessenta, e uma cicatriz profunda que modificou toda Hollywood.


A curiosidade de saber como o criativo e amalucado diretor iria tocar neste tabu da indústria do cinema americano era até maior do que o receio de desrespeitar memórias fragilizadas. No entanto, se tem algo que Once Upon a Time In Hollywood deixa claro, é de como precisávamos disso. De como o próprio legado de Sharon merecia uma exposição melhor do que ser para sempre a ex-esposa assassinada de Polanski por um psicopata carismático. A atriz que nunca, de fato, foi. Uma eterna promessa. Debra Tate, a irmã de Sharon, parece ter entendido isto antes de todos, ao anuir com a retratação da irmã para o filme e até auxiliar Margot e Quentin na composição da personagem.

O maior erro do filme, no entanto, é justamente sua divulgação como situado no contexto do assassinato de Tate e seus amigos. Provável que o próprio Tarantino tenha usado deste sumário para vender sua ideia ao estúdio. Porém, como é de se esperar, Once Upon a Time é muitas coisas, mas jamais um filme sobre Manson, e como costumeiro, se omite de comentários sociais ou políticos do cenário local no final dos anos sessenta, o que até pode incomodar alguns, mas sem muito sentido considerando a filmografia do diretor.

Tarantino é um cinéfilo obcecado, fanático. E como Pablo Villaça certa vez disse em um curso que fiz com ele, os filmes de Quentin são, acima de tudo, sobre cinema. Homenagens tão boas quanto as próprias inspirações. Mas ainda assim, homenagens. E ao fazer uma história passada na casa do cinema americano, com todo seu glamour, estrelas e mansões, o diretor atinge seu maior orgasmo como realizador, nitidamente aproveitando cada cena e inserindo passagens que não fazem assim tanto sentido dramático fora exibir alguma rua famosa, ou então o rosto dos atores durante atividades simples, como arrumar uma antena ou dirigir um carro - o diferencial, porém, está na ambientação. Em entrevistas para divulgar seu longa, Tarantino disse como queria contar mais sobre a desconhecida Hollywood, seus lados obscuros, e ainda que nos mostre bastidores, ele mesmo não percebe o quão deslumbrado é com a faxada mágica que a cidade adorna. Este é seu encantamento, assim como os atores: o inseguro Rick Dalton, que fazia sucesso na TV mas fracassou em sua transição ao cinema, e seu dublê e melhor amigo, Cliff Booth, títulos curtos e que parecem saídos diretamente de gente envolvida no showbusiness, afinal, mesmo americanos normais não soam tão sonoros e caricatos quanto os dois - baseados na amizade do ator Burt Reynolds (originalmente escalado para o papel interpretado por Bruce Dern após o falecimento do ator) e seu dublê de longa data, Hal Needham.


Apesar de contar com protagonistas fictícios, Rick e Cliff são um amálgama do que se vê na indústria, com suas personalidades e trejeitos, servindo tanto de reverência quanto ironia generalizada ao trabalho dos profissionais do cinema, como em cenas em que DiCaprio ouve que certa atuação sua foi a melhor já vista por outra pessoa ou quando ele esquece falas e se vê naufragado no vício de bebidas e cigarros. É um mix de realidade com fantasia que parece adequada à névoa de fascínio gerada por Hollywood, sua beleza, mas também podridão.

Assim, Once Upon a Time surge como o filme mais pessoal, e talvez o de mais difícil acesso por parte de Tarantino, por não contar com uma trama linearmente focada - pois o já mencionado episódio de Manson é mais do que secundário -, e sim uma espécie de balada sobre a vida em Hollywood. Uma aproximação cômica, mas igualmente apaixonada, do mundo por trás das câmeras - e também de frente. Os rostos conhecidos de Pitt e DiCaprio, dois dos últimos superstars de Hollywood, contribuem para a empatia de um público que poderia se ver pouco disposto em acompanhar, por quase três horas, tantos acontecimentos que, por mais interessantes que sejam, não deixam de ser mundanos e corriqueiros - sem perder, no entanto, os traços característicos do diretor, principalmente no terceiro ato, em que a subversão narrativa e histórica assume sua faceta fantástica e gore de vez, para delírio, aí, de toda plateia minimamente familiarizada com o estilo consagrado do cineasta.

É provável que a história de Manson e Tate nunca perca sua mística macabra e misteriosa, mas agora, temos algo mais belo, cativante e rico para lembrarmos e conversamos quando o assunto surgir.

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