His Dark Materials: Entre a Fé e a Ciência - Análise
Na primeira metade da década passada, impulsionada pelos sucessos estrondosos e bilionários de Senhor dos Anéis e Harry Potter, Hollywood fez o que sabe fazer de melhor: saturou o mercado achando que havia encontrado o novo Midas do gosto público, socando mais e mais adaptações de livros fantásticos infanto-juvenis ou para jovens adultos, em busca do próximo hit. Acabou que o que o espectador queria não era de fato fantasia, magia e espadas somente por serem assim, e sim tramas de qualidade que tivessem tal teor, como ainda ocorre hoje. Assim, ao passo que ainda chegaram sagas estáveis tardias, como Crepúsculo e Jogos Vorazes, que a despeito de qualidade, conseguiram cativar um nicho suficiente para angariar bastante fama, várias franquias, muitas com enorme potencial, naufragaram na pressa dos estúdios em lançar seus filmes sem o zelo devido para priorizar uma produção competente, mais focadas no imediatismo de superar as rivais. Adaptações diferenciadas e de êxito literário, como Percy Jackson, Spiderwick, Eu Sou o Número Quatro, Eragon, Instrumentos Mortais e.... A Bússola de Ouro.
O longa, adaptação do primeiro volume da trilogia Fronteiras do Universo, de Philip Pullman, possuía elementos fascinantes, como almas materializadas por animais, magia, mundos paralelos, ursos guerreiros falantes. Ou seja, não falta criatividade e características para atrair um público ávido por amostras do gênero. Porém, o longa foi um fracasso de público e crítica, muito distante de replicar o triunfo das histórias de Katniss ou Frodo, e com um orçamento voluptuoso e bastante expectativa dos executivos, o projeto foi descontinuado.
Passada mais de uma década, entretanto, a cultura pop se expandiu e seus meios de distribuição e consumo mudaram. Séries ganharam moral e tiraram espaço do cinema, e adaptações arriscadas e complexas receberam uma nova casa e oportunidades no mundo do streaming e da TV, tendo como Game of Thrones um dos maiores acertos da mídia na última década, reacendendo o desejo por ofertas similares, demanda atendida prontamente com séries da naipe de Vikings, The Last Kingdom, The Witcher, em onda que ainda dará muito o que falar, no que parece um esforço mais estável e garantido para explorar estes universos mirabolantes, cuja resposta e retorno financeiro é mais fácil em longo prazo do que num tiro curto, dependente de vários fatores, no cinema. Assim, His Dark Materials, nas mãos da HBO e da BBC, ganhou sua nova chance.
O que será que fez dois canais grandes e com referencial de qualidade apostarem e investirem caro, novamente, numa marca que já fracassou no passado, ao passo que tantas outras, até mais palatáveis ao público teen e, portanto, de mais fácil venda, permanecem esquecidas? Justamente a qualidade de seu material. Percy Jackson, Eu Sou o Número Quatro e vários dos outros mencionados poderiam, pelas mentes certas, até darem resultados bacanas. Mas nenhum deles, desde sua mitologia até seu desenvolvimento, possuem realmente grandes conspicuidades e novidades. São jornadas do Herói da cabeça aos pés, com vários momentos calcados num contexto que os beneficiou, e que numa grande mídia, talvez não dessem tão certo justamente por soarem como um amálgama de tudo que já vimos antes. São obras datadas. O próprio Rick Riordan possui trabalhos mais engajados e socialmente atuais e relevantes pós-PJ, porém sem a mesmo memória afetiva.
His Dark Materials, no Brasil chamado de Fronteiras do Universo, título que abrange os livros Bússola de Ouro, Faca Sutil e Luneta Âmbar, na contramão, apesar de ser, em tese, um coming of age com uma protagonista jovem que amadurece durante a história, engloba uma série de assuntos e abordagens únicas, complexas e que são um grande sonho nas mãos de profissionais criativos e ousados, pois são temas universais e que jamais datam por isso, permitindo, também, adaptações modernas que os torne atemporais. É mais do que uma simples narrativa de fantasia, é uma metáfora com inúmeras camadas que, sim, é visualmente e conceitualmente fascinante, recheada de elementos "cool" e que atiçam os olhos dos fissurados pelo gênero, mas que utiliza destes componentes com o intuito muito além de provocar diversão, e sim dizer algo, criticar algo, refletir algo, e provocar sensações que não somente o riso ou o êxtase momentâneo, ficando por muito tempo em nossas cabeças. É um pacote riquíssimo e completo, capaz de nos entreter e fazer pensar.
Até por esta pegada mais madura, uma série surge como oportunidade ideal para se transpor os livros de Pullman para o audiovisual, já que nos cinemas, onde as narrativas tendem a ser mais apressadas e, devido ao risco maior de rejeição, menos ousadas em todos os aspectos, o que sabota e muito a obra. Cair nos braços da BBC e da HBO, também, favorece a produção, já que a Netflix possui costume de sobre-estender suas séries em mais episódios do que o necessário para contar as histórias, o que gera monotonia e repetições cansativas.
Iorek Byrnison |
Apesar de não nomear seu mundo e até países, a saga começa em A Bússola de Ouro, e conta a história de Lyra Belacqua (Dafne Keen, se desvincilhando da X-23 de Logan), uma criança que vive na Universidade de Oxford, numa época muito similar à Era Vitoriana inglesa, com seus majestosos prédios góticos e visuais, por vezes, Steampunks. O tempo, apesar disto, nunca é definido. Lyra então entra numa miríade de acontecimentos movidos por adultos a quais ela não compreende, e é levada, à força e por sua personalidade resiliente, por uma jornada de autodescoberta e perda da inocência.
Livremente inspirado no poema O Paraíso Perdido, de John Milton, Pullman, ateu confesso, reconta, através de seus livros e seu intelecto sagaz e imaginativo, uma interpretação lúdica, porém ferrenha, da Queda do Homem, que genericamente, retrata o primeiro pecado mortal, quando Adão e Eva, até então inocentes, são corrompidos pela maçã e então deixam o paraíso, dando início ao suplício humano de redenção de seus pecados, em corpos e existências destinados à tentação. As religiões cristãs, naturalmente, condenam e consideram a atitude reprovável, e pregam uma vida de rejeição e expiação dos pecados, em busca do paraíso. A visão de Pullman, entretanto, é antagônica a esta, ainda que igualmente radical. Sua mensagem, entretanto, não é demagógica, dando espaço ao leitor encontrar sua interpretação final, ainda que as ações digam por si só. O que o escritor faz, somente, é expor, metaforicamente, o funcionamento da igreja, historicamente.
Em seu universo, toda a Igreja parece ter se unido numa única nomenclatura, tanto as vertentes Ocidentais, quanto Orientais, perante o nome de "Magistério". A entidade governa o mundo, comanda a ciência e doutrina seus povos. Porém, há quem não concorde com isto, e o principal dissidente é Lorde Asriel, na série vivido por James McAvoy, um aventureiro e cientista cujas intenções jamais são explicitamente descritas, mas que conforme a trama avança, se tornam claras: buscar o conhecimento, como sua profissão clama, mesmo que não se defina como tal, título que, supostamente, nem existe naquele universo.
Stelmaria, a bela Daemon de Lorde Asriel |
A ciência é a negação de fé, pois ela combate a dominação por meio dela, e desde os primórdios da humanidade, vai de encontro ao conhecimento, tencionando descobrir como as coisas funcionam, dar luz ao mundo escuro da religião, que procura, praticamente, controlar nossas ações por meios de regras ditas divinas e que definem se vamos, após a morte, para um mundo de dor e sofrimento, ou a um de paz e amor.
Desde antes de Cristo, a sociedade Ocidental passou por períodos distintos, cujo comando cognitivo foi liderara por razão e também fé. Foi a partir Idade Média (com a proliferação do cristianismo e quando o Império Romano se viu submisso a ele), que a filosofia pré-socratica e estoica, embriões da ciência e que estimulavam o pensamento crítico e a verdade através da comprovação e da razão, deram lugar, então, à fé, quando as verdades se tornaram absolutas através de escrituras antigas e homens ditos mensageiros celestiais, que utilizaram de carisma e conhecimentos para manipular e controlar as pessoas pelo medo por séculos para centralizar poder e riqueza na figura da igreja católica, suprimindo e asfixiando a mínima divergência intelectual que desafiasse suas doutrinas e ensinamentos. É a lógica, a razão, o pensar, o logos, que nos faz avançar e questionar o mundo. Para controlar o povo, a Igreja quer tudo, menos isso. Quer marionetes que temam desafiar as palavras de um ser dito onipotente e onipresente, cujos emissários são os regentes de instituições eclesiásticas. Não à toa, filósofos, cientistas e até pessoas comuns foram perseguidas e mortas por contrariarem os pensamentos religiosos, buscando estancar o avanço da humanidade. Foi só a partir do Século XIV, com o Renascimento, e posteriormente com o Iluminismo, que a razão, a lógica e o conhecimento voltaram a ser estimulados.
Porém, o estrago já estava feito. Mesmo com seu declínio a partir da Reforma Protestante, mais de um milênio de doutrinação e proselitismo não se apagam facilmente. Veladamente ou não, a religião ainda desempenha grande papel na nossa Sociedade Ocidental. Nações inteiras são comandadas por pensamentos propagados por instituições que utilizam do álibi adquirido historicamente para fazerem lavagem cerebral e controlarem as pessoas, as dizendo o que fazer e somente se adaptando ao novo contexto, mas ainda acumulando riquezas e bastante poder.
Desde antes de Cristo, a sociedade Ocidental passou por períodos distintos, cujo comando cognitivo foi liderara por razão e também fé. Foi a partir Idade Média (com a proliferação do cristianismo e quando o Império Romano se viu submisso a ele), que a filosofia pré-socratica e estoica, embriões da ciência e que estimulavam o pensamento crítico e a verdade através da comprovação e da razão, deram lugar, então, à fé, quando as verdades se tornaram absolutas através de escrituras antigas e homens ditos mensageiros celestiais, que utilizaram de carisma e conhecimentos para manipular e controlar as pessoas pelo medo por séculos para centralizar poder e riqueza na figura da igreja católica, suprimindo e asfixiando a mínima divergência intelectual que desafiasse suas doutrinas e ensinamentos. É a lógica, a razão, o pensar, o logos, que nos faz avançar e questionar o mundo. Para controlar o povo, a Igreja quer tudo, menos isso. Quer marionetes que temam desafiar as palavras de um ser dito onipotente e onipresente, cujos emissários são os regentes de instituições eclesiásticas. Não à toa, filósofos, cientistas e até pessoas comuns foram perseguidas e mortas por contrariarem os pensamentos religiosos, buscando estancar o avanço da humanidade. Foi só a partir do Século XIV, com o Renascimento, e posteriormente com o Iluminismo, que a razão, a lógica e o conhecimento voltaram a ser estimulados.
Porém, o estrago já estava feito. Mesmo com seu declínio a partir da Reforma Protestante, mais de um milênio de doutrinação e proselitismo não se apagam facilmente. Veladamente ou não, a religião ainda desempenha grande papel na nossa Sociedade Ocidental. Nações inteiras são comandadas por pensamentos propagados por instituições que utilizam do álibi adquirido historicamente para fazerem lavagem cerebral e controlarem as pessoas, as dizendo o que fazer e somente se adaptando ao novo contexto, mas ainda acumulando riquezas e bastante poder.
Lin-Manuel Miranda vive Lee Scoresby, um aeronauta. |
O universo de His Dark Materials se situa em um período no meio disso tudo, em que a fé ainda é dogmática e controla a sociedade, mas cujas divergências já começam a surgir, com rebeldes que buscam a verdade e são, obviamente, temidos e perseguidos pelo que podem revelar.
Para ilustrar isto, Pullman, sempre sutil e perspicaz, transforma a alma, que para filósofos desde a antiguidade simboliza nossa essência, comprova nossa existência, em um corpo material, na forma de um animal, que na puberdade ganha corpo definitivo de acordo com a personalidade de seu humano. Essa personificação é chamada de Daemon (termo originado na Grécia antiga que dá nome a Deuses que retratam nossas emoções e sensações, sem as definir como boas e ruins, como raiva, mas também alegria, amor, tristeza...).
Daemons, além do bichinho fofinho e bonitinho que aparece em tela, são partes indissociáveis de cada ser. A morte de um significa a morte de outro. O gatilho inicial da série se dá quando crianças, que ainda não possuem seu Daemon na forma definitiva, começam a sumir. Posteriormente, é revelado que elas eram sequestradas para servirem de cobaias no experimento de Mrs Coulter (vivida na série por Ruth Wilson), uma catedrática que busca separar as crianças de seus daemons. O magistério, veja bem, teme o tal do pó, cujo conceito não é formalmente explicado, e ninguém de fato ali sabe bem o que é. Ou seja, é algo desconhecido, e como tal, gera medo, como fora a teoria heliocentrista de Copérnico, Giordano Bruno e Galileu, Joana d'Arc, as teorias científicas heréticas de Roger Bacon ou os questionamentos de Kazimierz Lyszczynsk contra deuses pessoais. Tudo que é novo coloca em cheque as verdades impostas pela Igreja e, logo, seu controle.
Lorde Asriel, menos por empatia universal e mais por ego e busca por saber, um verdadeiro espírito científico, é inteligente o bastante para ser respeitado pelos catedráticos, até o ponto em que sua determinação se torna inconveniente. Homem resoluto e poderoso (seu Daemon é um imponente Leopardo das Neves), questiona justamente as imposições religiosas, e seu objetivo é descobrir a verdade sobre o pó.
Para a Igreja, o pó, que fica abundante no período da puberdade, quando as crianças deixam a inocência de lado e começam a ter pensamentos sexuais, impuros, insegurança, questionar o mundo ao redor e desenvolver senso crítico e sua personalidade, significa o pecado. O paradigma para comprovar suas teses é de que o pó é uma herança do erro de Adão e Eva, e portanto, buscando acabar com ele, começam experimentos dignos do nazismo para separar as crianças de seus daemons antes que eles tomem forma definitiva, quando então a pessoa estaria presa a uma vida pecaminosa. Isto visaria purificar a pessoa. No entanto, daemons são a alma do ser, e as crianças sujeitadas à "cirurgia" ou morrem, ou vivem em um estado vegetativo, se tornam seres irracionais e obedecem ordens de modo inconsciente e submisso. São as marionetes perfeitas para a igreja. Não questionam, não desafiam. Aceitam tudo em silêncio.
A Igreja quer reprimir e esconder o novo. Luta contra a ciência, pois ela colocaria em cheque tudo que fora pregado por séculos. No entanto, Lorde Asriel, mesmo sendo o oposto da Igreja, amplamente criticada por Pullman, não é um herói, tampouco um homem íntegro. Suas ações visam mais o saber próprio, e não para beneficiar a humanidade como um todo, tanto que seus métodos colocam outras vidas em cheque, e ele trata com pouca simpatia e apreço mesmo seu auxiliar. De certo modo, é um sociopata, insensível aos sentimentos dos outros. Assim, Philip parece tecer uma visão negativa até pra a ciência, mas não seu conceito desbravador, e sim muitas vezes como ela é utilizada, ou como se portam seus condutores, produzindo desigualdade, injustiças e guerras. Da mesma forma que cura doenças, impossibilita que muitos consigam pagar o tratamento. Se de um lado cria meios de facilitar nossa locomoção e aumentar nosso conforto, dificulta o acesso a isto, provocando dor e sofrimento, pois as descobertas são utilizadas de modo egoísta, visando o lucro e riqueza, e não distribuídas de modo igualitário e que beneficie a humanidade devidamente, o que de certa forma aproxima qualquer empresa a uma versão da igreja, sedenta por pilhas de ouro e influência.
A resposta de Pullman está no recomeço, na inocência das crianças. Não à toa, no universo de Fronteiras do Universo, quase todo adulto é visto como mesquinho, controlador, cético. Mesmo os bem intencionados acabam sendo tóxicos de algum modo em sua arrogância e desejos próprios. A esperança está nas crianças, como Lyra e seu amigo Roger, no amor que sentem um pelo outro e a forma como lutam não somente pelo que querem e os faz bem, mas inclusive dos outros, mesmo os de outra espécie, o que a torna uma protagonista tão carismática e admirável. Sem preconceitos, Lyra e as crianças da série ainda não atingiram a realidade Rousseauniana; isto é, não foram corrompidos pela sociedade, seja a ganância da Igreja ou do capitalismo, que juntos exemplificam perfeitamente a teoria da ferradura.
O grande charme de His Dark Materials e seus três livros está no equilíbrio e dinâmica com que a história discute tudo que abordei acima sem soar massante e intempestiva. É uma obra de fantasia, com bruxas voadoras, ursos falantes de armadura (um trabalho de CGI primoroso, que confere peso, brutalidade e inteligência às feras) e objetos mágicos. É divertida, mas não se conforma com isto, com camadas que estão lá para serem interpretadas a qualquer um que buscar conhecer mais sobre. Pullman não é didático ou pretensioso. Ele joga as cartas e permite reflexões próprias, mas como todo amante do conhecimento, estimula seu leitor a desafiar seus limites e ampliar seus horizontes.
A sair da caverna de Platão.
Para ilustrar isto, Pullman, sempre sutil e perspicaz, transforma a alma, que para filósofos desde a antiguidade simboliza nossa essência, comprova nossa existência, em um corpo material, na forma de um animal, que na puberdade ganha corpo definitivo de acordo com a personalidade de seu humano. Essa personificação é chamada de Daemon (termo originado na Grécia antiga que dá nome a Deuses que retratam nossas emoções e sensações, sem as definir como boas e ruins, como raiva, mas também alegria, amor, tristeza...).
Daemons, além do bichinho fofinho e bonitinho que aparece em tela, são partes indissociáveis de cada ser. A morte de um significa a morte de outro. O gatilho inicial da série se dá quando crianças, que ainda não possuem seu Daemon na forma definitiva, começam a sumir. Posteriormente, é revelado que elas eram sequestradas para servirem de cobaias no experimento de Mrs Coulter (vivida na série por Ruth Wilson), uma catedrática que busca separar as crianças de seus daemons. O magistério, veja bem, teme o tal do pó, cujo conceito não é formalmente explicado, e ninguém de fato ali sabe bem o que é. Ou seja, é algo desconhecido, e como tal, gera medo, como fora a teoria heliocentrista de Copérnico, Giordano Bruno e Galileu, Joana d'Arc, as teorias científicas heréticas de Roger Bacon ou os questionamentos de Kazimierz Lyszczynsk contra deuses pessoais. Tudo que é novo coloca em cheque as verdades impostas pela Igreja e, logo, seu controle.
Ruth Wilson é a Senhora Coulter |
Para a Igreja, o pó, que fica abundante no período da puberdade, quando as crianças deixam a inocência de lado e começam a ter pensamentos sexuais, impuros, insegurança, questionar o mundo ao redor e desenvolver senso crítico e sua personalidade, significa o pecado. O paradigma para comprovar suas teses é de que o pó é uma herança do erro de Adão e Eva, e portanto, buscando acabar com ele, começam experimentos dignos do nazismo para separar as crianças de seus daemons antes que eles tomem forma definitiva, quando então a pessoa estaria presa a uma vida pecaminosa. Isto visaria purificar a pessoa. No entanto, daemons são a alma do ser, e as crianças sujeitadas à "cirurgia" ou morrem, ou vivem em um estado vegetativo, se tornam seres irracionais e obedecem ordens de modo inconsciente e submisso. São as marionetes perfeitas para a igreja. Não questionam, não desafiam. Aceitam tudo em silêncio.
A Igreja quer reprimir e esconder o novo. Luta contra a ciência, pois ela colocaria em cheque tudo que fora pregado por séculos. No entanto, Lorde Asriel, mesmo sendo o oposto da Igreja, amplamente criticada por Pullman, não é um herói, tampouco um homem íntegro. Suas ações visam mais o saber próprio, e não para beneficiar a humanidade como um todo, tanto que seus métodos colocam outras vidas em cheque, e ele trata com pouca simpatia e apreço mesmo seu auxiliar. De certo modo, é um sociopata, insensível aos sentimentos dos outros. Assim, Philip parece tecer uma visão negativa até pra a ciência, mas não seu conceito desbravador, e sim muitas vezes como ela é utilizada, ou como se portam seus condutores, produzindo desigualdade, injustiças e guerras. Da mesma forma que cura doenças, impossibilita que muitos consigam pagar o tratamento. Se de um lado cria meios de facilitar nossa locomoção e aumentar nosso conforto, dificulta o acesso a isto, provocando dor e sofrimento, pois as descobertas são utilizadas de modo egoísta, visando o lucro e riqueza, e não distribuídas de modo igualitário e que beneficie a humanidade devidamente, o que de certa forma aproxima qualquer empresa a uma versão da igreja, sedenta por pilhas de ouro e influência.
A resposta de Pullman está no recomeço, na inocência das crianças. Não à toa, no universo de Fronteiras do Universo, quase todo adulto é visto como mesquinho, controlador, cético. Mesmo os bem intencionados acabam sendo tóxicos de algum modo em sua arrogância e desejos próprios. A esperança está nas crianças, como Lyra e seu amigo Roger, no amor que sentem um pelo outro e a forma como lutam não somente pelo que querem e os faz bem, mas inclusive dos outros, mesmo os de outra espécie, o que a torna uma protagonista tão carismática e admirável. Sem preconceitos, Lyra e as crianças da série ainda não atingiram a realidade Rousseauniana; isto é, não foram corrompidos pela sociedade, seja a ganância da Igreja ou do capitalismo, que juntos exemplificam perfeitamente a teoria da ferradura.
O grande charme de His Dark Materials e seus três livros está no equilíbrio e dinâmica com que a história discute tudo que abordei acima sem soar massante e intempestiva. É uma obra de fantasia, com bruxas voadoras, ursos falantes de armadura (um trabalho de CGI primoroso, que confere peso, brutalidade e inteligência às feras) e objetos mágicos. É divertida, mas não se conforma com isto, com camadas que estão lá para serem interpretadas a qualquer um que buscar conhecer mais sobre. Pullman não é didático ou pretensioso. Ele joga as cartas e permite reflexões próprias, mas como todo amante do conhecimento, estimula seu leitor a desafiar seus limites e ampliar seus horizontes.
James McAvoy como Lorde Asriel |
Que texto, Carlos. A trilogia de livros é a minha favorita (por enquanto, já que atualmente leio "A Sociedade do Anel") e "A Luneta Âmbar" é, de longe, o meu livro preferido (aquele final ainda me impacta pela sua beleza). Assisti aos três primeiros episódios da adaptação e não mais acompanhei. Antes por outras atribulações que por desgosto, já que eu estava gostando bastante da série (a incrível Marisa Coulter ganhou umas novas dimensões aqui que me impressionaram muito). Tentarei finalizá-la o mais rápido possível, até porque estou querendo MUITO ver o que vão fazer dessa obra no futuro (Metatron, Balthamos, Baruch...) e é sempre um deleite pra mim ver a abertura desse negócio.
ResponderExcluirSou fã demais. Comprei hoje pra ler o segundo da nova série dele, que também se passa no universo de HDM.
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