Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa - Crítica
"Você sabe o que é um Arlequim?", pede Harley em certa parte do filme, "O papel de um Arlequim é servir. Ele não é nada sem um mestre. Ninguém dá a mínima para o que somos, além disso." A frase resume o que fora a vida da personagem enquanto alter ego Arlequina até então, mas não somente o que se esperava dela, e sim ao que ela mesmo se submetia, após anos de uma subserviência apaixonada e patológica ao Coringa, seu agora ex-namorado, na qual claramente vivia um relacionamento unilateral e abusivo, como podíamos ver no tenebroso Esquadrão Suicida. A devoção de Harley é o que a movia, o que dava sentido à sua existência. Ela não possuía vida própria, sendo uma sombra do icônico vilão. Não em vão, no começo de Aves de Rapina, ela é frequentemente retratada como "a mulher do Coringa", o que lhe garantia álibi e passe livre para fazer o que bem quisesse. Novamente, não por ser quem é, mas o que representava a um homem.
A trama de Bird of Prey tem início justamente na quebra desta armadura, gatilho que a torna, agora, supostamente vulnerável e acessível a todos a qual fez alguma travessura ou maldade, mas que não podiam buscar vingança por medo e obediência ao Coringa. Arlequina e Nêmesis de Batman se separaram, algo que partiu, claramente, dele, a deixando numa espiral de autodestruição e falta de sentido que se aproxima de um niilismo delinquente, apesar de nunca atingir tons sérios. Para salvar sua vida, Harley agora tem um autonomia forçada para encontrar sua essência e criar a própria reputação além de uma palhaça irritante.
O sucesso visual e encouraçado pela performance poderosa de Margot Robbie em Esquadrão Suicida, basicamente o único elemento aceitável daquela...coisa, cuja fama procedeu a do próprio longa, aliado a disposição de Margot, motivaram a Warner a investir numa marca particular da anti-heroína, se justificando nos recentes sucesso de blockbusters destinados a personagens femininas, encontrando no feminismo um norte dramático e narrativo para contar as histórias destas personagens.
Curiosamente, a imagem de Arlequina de Esquadrão Suicida e quase qualquer material prévio da personagem, responsáveis por sua popularidade, fora criada e idealizada por homens, contando com um male gaze considerável na figura exposta e celebrada. Aves de Rapina usa dessa fama que possibilitou o longa e o adapta a uma visão mais adequada e menos fetichizada a Harley, num filme dirigido e escrito por mulheres, porém sem perder a identidade sociopata e despojada da personagem, ressignificando sua importância sem trair a essência que a tornou tão marcante. O vestuário e o design não são mais hiper-sexualizados, mas não deixam de ser criativos e estilosos, certamente atualizando as fantasias de Halloween dos próximos anos. E o show de atuação de Margot Robbie, que domina a tela e se diverte no papel de forma contagiante, a encarnando de fato, deixando de lado qualquer impressão de interpretação, é imersiva e descarta qualquer opinião negativa coerente sobre o brilho próprio da figura, no que muitos detratores gostam de chamar de lacração ou forçação.
O vigor do filme, que apesar do título, é basicamente uma aventura solo de Quinn, é como ele conta, sim, uma história do ponto de vista feminino, retratado e protagonizado por mulheres fortes e independentes, sem apelar para a subversão que isso simbolizaria, assumindo somente o caráter natural das indivíduas autônomas e enérgicas, focando nas próprias personagens, algo que Mulher-Maravilha fez muito bem, e por isto conquistou tantos louros. E como bem disse Jenkins, diretora de Wonder Woman, em resposta a James Cameron, uma mulher potente tem o direito de ser feminina. Beleza e vaidade não são antônimos de coragem. Uma prova de como o olhar masculino ainda dominam a imagem feminina na cultura pop, mesmo em personagens encrustadas no imaginário popular como Ripley e Sarah Connor.
Apesar de não ser de fato uma benfeitora, a Arlequina moderna se assemelha muito a Deadpool, clara inspiração narrativa do longa, não se encaixando no estereótipo de heroína. Ela é desbocada, imprudente e descompromissada, mas pratica o mal, no fim, com "boas intenções". A quebra da quarta parede e o modo não-linear de contar a história, apesar de divertidos e construírem bem a personagem, são aspectos que incomodam pela similaridade óbvia com o Deadpool, o que prejudica a independência e organicidade do próprio filme, como se uma película de personagens de quadrinhos com censura alta não pudesse seguir outra fórmula.
De todo modo, é o magnetismo de Margot, mais do que o roteiro ou qualquer outro elemento, que torna a experiência impressionante e rápida. Desequilibrada e completamente louca, o filme é frequentemente mostrado através de sua ótica tresloucada, de modo que a realidade vista é muitas vezes uma fantasia, como as explosões cheias de cores e a beleza caótica de uma Gotham puída e decadente, mesmo em seus subúrbios. É só notar a diferença do mundo ao retor de Harley com o das outras integrantes do Aves de Rapina, que devido a sua natureza trágica, mostram tons mais sóbrios e escuros, até que sejam devidamente amolecidos e invadidos pela energia insuperável da personagem-título, tornando o clima descontraído e cômico mesmo por trás de situações pesadas.
Assim como sua protagonista, o filme não se leva devidamente a sério, o que não é um demérito e jamais prejudica a luta implícita contra o patriarcado, movimento de une as quatro mulheres do grupo, todas oprimidas e subjugadas, de algum modo, por homens. O que elas buscam é a própria voz, sem dividir holofotes, numa sororidade abrupta, mas que as torna cúmplices e companheiras de modo improvável. O próprio texto brinca, ironicamente, com as conveniências e convenções do gênero, o que o "inibe" de certas críticas oportunas, porém não invalida os defeitos claros da narrativa, como a falta de desenvolvimento da Caçadora de Mary Elizabeth Winstead, apesar de ser o segundo nome dos créditos, mas que recebe menos atenção e tempo em tela até que as outras Aves.
O antagonista Máscara Negra tampouco representa uma real ameaça, e apesar do esforço e carisma de Ewan McGregor, é só mais um pilar pouco resistente que serve de apoio para Harley, a estrela única do espetáculo em escolha que, espero, sirva de introdução para sequências mais robustas sem a necessidade de a apresentar melhor.
Porém, mesmo com suas comparações com Deadpool, não se nega a individualidade forte no design de produção do longa, além de coreografias surpreendentes, filmadas do modo claro, mirabolante e lúdico, o que já o difere, positivamente, de quase qualquer filme da Marvel, assim como o desapego universal da DC não força um encaixe em algo maior, o que pode afetar futuras reuniões, mas permite longas solos melhores.
Apoiado em sua protagonista inebriante, suas fortes cores e uma direção inspirada em clipes musicais, com cenas em slow motion que darão gifs lindos, Aves de Rapina não muda o jogo, mas é mais um capítulo da bem-sucedida reinvenção da DC no cinema, ressaltando as boas diferenças e que, atualmente, dão um respiro na mesmice monótona do cinema de nicho.
Achei o filme divertido, mas o vi como um amontoado de ideias com resultados medianos. A maior pena mesmo é o pessoal julgando de lacrador sem ao menos ver. Os caras se doem só de ouvir a palavra feminismo rs
ResponderExcluirSenti o desenvolvimento da introdução da premissa muito fraca. Pra quem lê as HQs, sabe que a Arlequina e o Coringa já brigaram várias vezes e ela sempre voltava pra ele. Durante o título do Esquadrão Suicida nos Novos 52 que isso mudou. Diferente do filme, na HQ a Arlequina não levou um fora do Coringa e pronto, vida que segue. Ela mesma o confrontou depois de não aguentar mais sofrer nas mãos dele. Abuso atrás de abuso. Como consequência, ele ainda tenta se vingar dela, mas ela sai vitoriosa. Creio que essa ideia seja muito melhor que a apresentada no filme, inclusive deixando a personagem mais interessante e empoderada. Talvez pudesse ser a ideia do cancelado longa dos dois como casal.