Dois Irmãos; A Beleza do que Temos - Crítica


A mente humana pode ser maravilhosa; criativa, engenhosa, prática e mirabolante. Criamos parafernalhas do nada, sistemas para solucionar nossos problemas, e também inventamos histórias. No livro "Sapiens", o autor Yuval Harari defende como o diferencial de nossa espécie para os outros hominídeos, o que nos permitiu evoluir e se tornar os dominantes e herdeiros do planeta, foi nossa criatividade superior, capaz de nos adaptarmos através de novos métodos de sobrevivência.

Apesar de conseguirmos inventar tramas, personagens e tudo que compõe uma história, cada narrativa apresenta um traço de verdade. As melhores, pelo menos, algum elemento constituinte que o criador desenvolveu através do esboço de alguma memória ou evento pessoal e universal. Desde o sanguinário Era Uma Vez em Hollywood ao clássico Em Busca do Vale Encantado, de dinossauros falantes a dublês de cinema silentes e donos de pitbulls, algum elemento verídico serviu de base para se esmiuçar, então, um universo fictício.


A história de Dois Irmãos discorre num universo fantástico onde dragões, magos e outros seres mitológicos são os habitantes, mas cuja evolução os colocou, a despeito de sua raça, num contexto social idêntico ao humano, com variações próprias. A seleção natural transformou dragões em Pets, Unicórnios em pragas gigantes e bestas monstruosas em proletariado. Fadas não usas mais as asas, andam de motocicleta. Um centauro se exaure ao correr poucos metros e gnomos são viciados em aparelhos eletrônicos.

A trama acompanha dois jovens elfos, Ian (Tom Holland) e Barley (Chris Pratt) Lightfoot, criados por sua mãe após o falecimento do pai, qual o primeiro nem conheceu, e o segundo apresenta parcas lembranças. No aniversário de 16 anos de Ian, sua mãe Lauren, vivida por Julia Louis-Dreyfus, os entrega um presente deixado pelo pai (voz de Kyle Bornheimer) para quando ambos tivessem mais de 16 primaveras. Junto a um cajado mágico, uma carta do patriarca faz um breve resumo de como o mundo costumava ser belo e cheio de magia, e como gostaria de que os filhos não perdessem isso.

Enquanto Barley, o mais velho, extrovertido, brincalhão e atrapalhado é aficionado pelo passado medieval de seus antepassados, obcecado por RPGs que retratam o "outrora" e conhecedor de cada feitiço e etapa das jornadas de heróis, Ian encarna o clássico personagem magricelo de rosto alongado e nariz avantajado. Como Soluço, Linguini e Flik, Ian é um tanto melancólico e deslocado no mundo, em busca do próprio espaço, mas sem muita confiança de como agir. Novamente vemos um tipo introspectivo ser associado a tais características, num estereótipo problemático na indústria pop.


Assim, Onward se assume como um coming of age, que conversa com o título original, cuja tradução, em frente, se atrela tanto à trama, quanto ao amadurecimento dos protagonistas do título nacional, um tanto explícito e pouco imaginativo.

Apesar de seu mundo mágico e encantador, o norte de Dois Irmãos, como todo longa da Pixar, possui profundidade e um enfoque no desenvolvimento emocional dos condutores da história, e o peso da narrativa está no fato de que o diretor, Dan Scanlon, usou de sua própria experiência, ao perder o pai, no projeto, onde também assina o roteiro. Como eu disse, mesmo na mais ilógica e fantabulosa ideia, há pessoalidade por trás, e é isto que difere um enredo bem-intencionado, porém vazio, de uma obra consistente, madura e cheia de camadas com algo a dizer e sabendo como o fazer, que é o caso de Dois Irmãos.

Ao assumir e expressar, sem rodeios, como o pai dos protagonistas está morto, o filme atrai um empatia imediata aos Lightfoot, mesmo a quem não passou pelo mesmo trauma ( em condições ideais), e o design e vozes carismáticos (em ótima dublagem nacional) dos irmãos, assim como sua mãe, os torna familiares e rapidamente agradáveis ao espectador, para que se envolva em sua epopeia emocional.

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Apesar de vacilante na última década, o selo de qualidade da Pixar se dá presente ao alinhar essa complexidade temática com um desenrolar divertido e leve, porém coeso e fiel em suas ambições, onde a ausência do pai sempre está presente e mesmo assim há momentos divertidos extraídos da situação, enquanto a boa dinâmica de Barney e Ian prende fácil. O universo mitológico permite infindáveis referências, e a originalidade com que são transportados a um mundo contemporâneo, algo como se os Flinstones se passasse no Século XXI, ocasiona momentos e revelações curiosas e indagadores do que poderia ter acontecido com essa ou aquela criatura quais gostamos, mas foram deixadas de fora. Isto, infelizmente, também pode ser caracterizado como uma falha, pois haveria espaço para aproveitar melhor o universo inserido, sem se desfocar do cerne da narrativa, pois durante o caminho da aventura, que se desenrola num excêntrico road movie, várias oportunidades são ofertadas.

Entretanto, imaginar o que de melhor poderia ter sido feito só ocorre pela ideia original ter saído de algum lugar, e há bastante mérito nisto. E é bonito perceber como a passagem do tempo influenciou a sociedade não serve somente para contar piadas, como discutir assuntos atuais e propiciar reflexões contundentes num público adulto. A ciência permitiu uma distribuição de privilégios mais igualitária, visto que no passado, como retratado, nem todos tinham acesso a poderes mágicos, mas também gerou estagnação, conformismo, desleixo e até retardo evolucional em algumas espécias, como supracitado, os unicórnios-ratos, e a bizarrice de fadas que não conseguem voar por desuso de suas asas. São virtudes e dons atrofiado e esquecidos, num mundo que parece ter perdido a imaginação e a magia, cruelmente prático e imediato demais. O belo foi substituído pelo rápido e conveniente.

A jornada de Barley e, principalmente, Ian, é não numa nostalgia irreal ao passado, pois algumas coisas melhoraram de fato, e sim ao encontro de um equilíbrio em que o que veio antes serve de aprendizado, e certos dons e valores são insubstituíveis, particulares e intrínsecos a cada um, e afogá-los e perdê-los é o maior erro que poderíamos fazer, em nível pessoal e geral.


Às vezes, o que precisamos está em nós, ou conosco, sem necessidade de substituição ou acréscimo. Somente percepção.

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