Mulan (2020) - Crítica

Eu fui, desde o começo, defensor das mudanças anunciadas para o live-action de Mulan. Já seria sem nenhum conhecimento da repercussão da animação na China, somente pela possibilidade de ver uma adaptação que realmente almeje ser algo fora um copy paste de uma obra aclamada do passado. É uma decisão que, em teoria, demonstra um valor artístico individual, enquanto a grande maior dos live-actions da Disney até aqui pecaram, acima de tudo, em se contentarem no burocrático caminho da transposição de mídias sem considerar suas diferenças conceituais. Ao estudar mais sobre o conto original e as impressões dos nativos sobre o longa eternizado pela Disney, ganhei também razões morais para apoiar as deliberações da produção.

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O original é um marco do estúdio e do cinema americano e estará para sempre lá, intocável, a quem quiser assistir - e recomendo que façam, pois segue incrível. Porém, todo filme é fruto de seu tempo, e a história de Mulan, oriunda de um poema chinês do século VII, é assustadoramente atual, cada vez mais pontual e poderosa. Logo, por mais impactante que seja a animação, seria um desperdício social, além de um desserviço criativo, somente reutilizar os elementos já conhecidos sem atualizar a trama para nossos tempos, fortificando a mensagem emponderadora e ainda respeitando a cultura original que nos brindou com este conto para a eternidade. O fato do mercado cinematográfico chinês ser o que mais cresce no mundo e cada vez mais lucrativo para os estúdios americanos também deve ter estimulado os executivos, rs. 

Neste aspecto histórico-social, é frutífero o trabalho da Disney em escalar um elenco todo asiático e estudar devidamente não somente os costumes locais, como considerar a factualidade do período em que se passa a trama, durante a Dinastia Tang, como ao usar os Rouranos, um povo protomongol, como antagonistas. É a acuidade temporal que reforça o peso da escolha de Mulan, que ainda hoje seria encarada com olhares tortos e velados, mas que naquele período, seria impensável. 

Nisto, apesar de parecer fácil investir em nostalgia, a ousadia das escolhas evidenciam uma impetuosidade incomum ao estúdio: Mulan é tanto o primeiro filme com censura 13 anos da Disney, quanto o marco inicial da casa de Mickey em épicos de Guerra. São aspectos positivos e que atiçam um fã da história, bem como da animação, ao receber uma roupagem mais séria e acurada deste mito chinês. 

Apesar de retratar um conflito bélico, porém, o embate principal em Mulan sempre foi um de introspecção, diria até ideológico, em confrontar um status quo determinante e nada justo, mas implicado até mesmo nas próprias vítimas. Assim, as ausências de Mushu, que serve a um propósito cômico-fantasioso que não cabe neste universo, e Shang, um elemento dissonante numa história de foco feminino, são essenciais, assim como o melhor acréscimo da narrativa, ao menos teoricamente, que é a personagem Xianniang, ou A Bruxa, também vítima de sexismo milenar, mas inserida no contexto do inimigo. Ao espelhar o heroísmo de Mulan com a vilania humanizada de Xianniang meramente como questões de contexto ou sorte, a ambiguidade entre bem e mal se distorce e se torna menos importante que uma constatação Rousseauniana do papel social em evitar a criação de monstros por pura exclusão e estigmatização. Abraçar antes de empurrar. 

A ideia implícita de autonomia feminina é, naturalmente, onipresente em Mulan, e ganha reforço justamente pela sororidade que surge entre as duas mulheres numa guerra de homens. Mas os méritos desta escolha não fazem o filme, pois para ele funcionar moralmente, teria de operar também dramaticamente. E Mulan ainda é um blockbuster grandiloquente e multimilionário a que serve o valor de ensinar através do entretenimento, e aí percebemos que, na verdade, faltou originalidade na produção. 

Eu entrei determinado a evitar qualquer comparação com a animação, inspirado nas próprias escolhas conhecidas da película, mas são as próprias imagens que evocam esta similaridade, cruzando, infelizmente, a fronteira da referência para a simples repaginação. E é trágico constatar como, mesmo com quase 30 minutos a mais, o nível de encantamento e envolvimento deste Mulan perca em basicamente todas os cotejos para o clássico. Ele é menos dramático, menos engraçado e menos épico. Portanto, menos emocionante e capaz em transmitir as mensagens de suas camadas. 

Dois trechos ricos e importantíssimos na animação, a silenciosa e sentimental cena em que Mulan se prepara para assumir o papel de pai, e posteriormente, o musical do "Homem Ser", que exibe todo o percurso de treinamento do batalhão, seminais para a incursão dramática na epopeia de Mulan, são replicados sem nenhuma discrição de se evitar a lembrança, e completamente exauridos, por questões sonoras e de montagem, que enfraquecem o poder da narrativa justamente por não salientarem o risco de Mulan nem o companheirismo e evolução dos homens - algo ainda mais inadmissível quando consideramos que os mesmos personagens vistos na animação são nomeados aqui, mas sem envolvimento emocional. Na animação, estas duas passagens, mesmo que sem nenhum diálogo, forneceram informações e sensações que foram primordiais para dar sustância ao filme, e evocá-las sem peso somente fragiliza a narrativa. O resultado é um meio-termo, preso entre a avidez por inovar e o desespero de recordar, que borra a própria personalidade, um defeito contraditório num conto sobre a busca e aceitação da própria identidade. 

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As decisões da produção, depois de tudo isto, soam mais como indecisões entre o que tirar para corroborar uma dinâmica nova da direção, e o que manter para deixar claro que é um remake para não trair os apaixonados pelo material precursor. Por isso, a sombra sempre está lá, e em tudo que tenta emular, este Mulan é mais fraco e raso. Grande parte dos vários minutos a mais, que deveriam ser dispostos para desenvolver personagens ou ao menos empolgar na ação, são desperdiçados, e todo momento primordial soa apressado e superficial. Cenas que você percebe o intento em parecer maior, ou poderoso, mas deixam a sensação de um trabalho incompleto. A fita animada, com menos, entregou muito mais. Aqui, gostamos menos de cada figura, nos importamos menos com eles, e as batalhas ficam menos urgentes por este distanciamento emocional. Logo, ele é inferior em todo aspecto que toca. Talvez nada expresse isso melhor que a cena em que Mulan se revela mulher. Mesmo que seja feita com uma distinção compreensível, visto que na animação ocorre por fatalidade, enquanto aqui é ela que doma seu destino e resolve revelar sua identidade, não há tensão dramática no momento, tendo sua escolha surgido abruptamente após um rápido diálogo com A Bruxa. Um filme é emoção, e um blockbuster, ainda mais dependente desta relação sentimental para atingir êxito, e Mulan acelera e elabora com pouca inspiração cada característica capital de sua trama, esgotando a intensidade que a história deveria ter. 

Mulan, com seu orçamento gigantesco, quase duas horas, sua bela fotografia e design de produção, é menos impactante que a fita a qual se inspirou. E justamente por isto, menos sucedido em transmitir sua mensagem, por mais atualizada e bonita que esta seja. Um esforço meramente estético, plenamente esquecível. 

2 comentários:

  1. Quanto mais penso nesse filme e leio sobre, mais defeituoso ele soa, mas ainda assim algo nele o torna atraente, talvez pelo visual, pela trilha, pela jornada de Mulan ser boa o suficiente pra interessar. Gostei e mal percebi a hora passar, mas também me incomodei com muitos pontos mesmo sequer comparando com a animação. Mas sim, é uma versão menos impactante que sua versão animada. Bem menos.

    Vale dizer que a diretora chegou a defender as mudanças do filme não só pelo que os chineses viram de errado no original, mas tb com justificativas como querer um filme mais realista (inclusive usado pra dizer o motivo de não ser um musical, que "não cantavam na guerra" e outras besteiras). Acabou que o filme anda sofrendo boicote de alguns chineses do mesmo jeito, mas não pelo filme em si, e sim por toda a polêmica da atriz protagonista e da própria Disney defender o governo e a polícia num momento em que o povo se revolta contra eles em movimentos pró-democracia. Além da Disney se queimar com seus fãs, ainda teve boicote por parte do governo que pediu (ou até mesmo proibiu) pra não divulgarem o filme.

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    1. Acabei que nem desenvolvi meu pensamento sobre a parte do "realismo": Apoiei as mudanças válidas, até pq devemos procurar entender o lado de quem tá sendo representado, mas a tal desculpa do realismo por exemplo, de não ter música na guerra e tal, não (daí o "outras besteiras" que citei). Vejo o filme e me aparece uma bruxa que vira pássaro, uma Fênix, lutas exageradas bem aos moldes chineses com gente voando ao aplicar golpes ou até lutando com cortinas como se fossem poderosas armas... E a cena da avalanche. Complicado. E existia música na guerra sim. Mas é apenas uma reclamação de observação, não to julgando o resultado final por esse motivo.

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