On The Rocks, Mães de Verdade, Borat 2, A Bruxa de Blair, O Diabo de Cada Dia - Textos Letterboxd

Queridos e idas, inauguro aqui um novo quadro no blog, o "Textos Letterboxd", em que publico uma compilação de reviews que tenho postado na rede social de cinéfilos ultimamente. Costumam ser trabalhos mais curtos e descompromissados, menos embasados e desenvolvidos, normalmente em inglês e de obras mais cults e antigas que não recebem críticas completas aqui. 

Para os escritos não simplesmente se perderam na massa do Letter, então, e como considero que alguns possuem algum valor literário, assim como movimentar o blog neste período de pouca atividade, vou postar aqui os textos traduzidos que achar válidos.  

Espero que gostem.

---------

On the Rocks (2020) - Sofia Coppola

É quase perturbador ver Marlon Wayans realmente atuando. É como se ele não pertencesse a esse lugar e acabará fazendo alguns gestos e vozes retardados inevitavelmente.

Mas cara, ele é bom e até gostoso.

O filme, no entanto, uma obra íntima e menor, mas muito consistente de Sofia Coppola, é um dueto entre Murray e Jones.

Mas é na jornada de Rashida que vejo aqui a análise e a mensagem mais interessantes. O tédio na rotina, perdida sem palavras. Sua personagem parece nunca ter nada a dizer, nada para continuar ou completar uma conversa. Nenhuma paixão por nada além de seus filhos. Presa naquele aspecto da meia-idade da vida de uma mulher, ficando em casa e cuidando dos filhos, enquanto o marido trabalha. Mas ela simplesmente não é sua dona de casa normal dos anos 80. Ela é inteligente, uma escritora de sucesso e, mesmo assim, espera-se que atue com um papel feminino primitivo.

Seu pai, interpretado com maestria e graça por Bill, lembra a ela, várias vezes, de como as mulheres costumavam ser propriedade dos homens no passado, e como o comportamento dos homens em relação à luxúria e ao tesão se originou nos dias anteriores e evoluiu até agora. Adaptado, mas onipresente. No entanto, em geral, nada mudou muito e ele basicamente define nós, do sexo masculino, como bestas irracionais e movidas pelo sexo, incapazes de uma monogamia honesta.

Sua companhia a influencia na suspeita da traição de seu marido, e é esse o motivo para levar a cabo a trama. Mas apesar da óbvia temática sexista das mulheres como propriedade, e até mesmo do final amargo por trás dos sorrisos e da conclusão aparentemente feliz, o que mais me inspirou foi a temática da rotina e da passividade aqui, cegando e escondendo os modos modernos nos quais papéis antigos são desempenhados.

Como eu dizia antes, apesar de rica, bem-sucedida, com filhos amorosos e um marido, o caráter de Rashida se perde, dessa vez não na tradução, mas na estagnação e na repetitividade cotidiana. Ela pode ter um emprego, mas nunca é vista escrevendo, dando entrevistas ou participando de eventos. Ela leva os filhos para dentro e fora da escola, brinca com eles, dorme cedo e espera pelo marido ocupado, depois o beija e diz boa noite, ou simplesmente adormece antes. Suas conversas são unilaterais e não intencionais. Ela apenas ouve, desinteressada e parece não ter nada a dizer. Ela vai ao jantar da empresa do marido e é repassada aos funcionários como um fardo, com rostos estranhos, olhar distante, ansiando por não estar ali, completamente deslocada. Aí vem seu pai, e ele realmente a ama, tenta ajudá-la e colocá-la em ação. Mas age principalmente por ele. Ela não quer ir, mas ele insiste e ela se cansa de recusar. O que ele diz, ela acena com a cabeça ou pelo menos aceita em silêncio, vai em suas festas e lugares.

Resumindo, ela não tem uma vida própria, vivendo para os outros. Criando as meninas, esperando o marido, seguindo o pai, usando seu relógio. O tédio e o cansaço da rotina comendo-a viva. Diante disso, a busca pela verdade por trás do marido, junto com o pai, vem quase como um alívio, uma novidade. Ela tem dinheiro, carreira, talento, família, inteligência e aparência. Ela é muito, muito privilegiada, mas se perdeu.

E eu amo como o final é mordaz e sarcástico por essa visão. Ela diz não ao pai e entra em um acordo com o marido. Escrever parece fácil agora. Talvez ela finalmente reivindicou seu próprio destino, alcançou o equilíbrio da modernidade.

Mas acho que não. Ela trocou o relógio do pai pelo relógio do marido. Estamos sempre exercendo papéis primitivos de gênero por baixo das camadas superficiais. Gostei de como Sofia não esqueceu como isso pode afetar os homens também, nos personagens de Wayans, que realmente ama sua família e trabalha e trabalha para ser suficiente; prover e proteger - ele já procriou, completando os 3 infames P's dos homens -, mas também Murray, recusando-se a assumir o comportamento de vovô, agindo como um jovem Don Juan, um bon vivant mimado. Ele nunca se desculpa de verdade, e mesmo que seus olhos sugiram arrependimento, sua boca lamenta como sua filha já foi tão legal. Ele está, até hoje, tentando completar o círculo completo da masculinidade, mas com a mente mais sexista de seu tempo. A persona de Murray ilustra bem isso, porque você não consegue odiar o cara. Ele diz coisas absurdas e flerta com cada garota que encontra. Ele não é mau ou imoral, mas um velho e charmoso ícone de uma geração passada, cujas atitudes são agora moralmente recriminadas, mas não esquecidas - por homens ou mulheres.

Estamos mais inteligentes e bonitos agora, evoluindo lentamente. Mas no fundo do nosso DNA, ainda somos homens das cavernas primitivos.

------

Mães de Verdade (2020) - Naomi Kawase

As pessoas continuam a atacar e acusar o cinema decadente de Kawase, mas eu sempre o amo.

True Mothers poderia render dois bons filmes, ou um muito bom, na verdade, baseado na visão da diretora sobre as diferentes realidades - o casal estabilizado e de classe média alta, desejando um filho que eles não podem ter biologicamente, e a adolescente que engravida de má vontade e tem sua vida arruinada por isso. É um contraste entre a visão divina da gravidez e outra destrutiva.

Mas Naomi, é claro, nunca investe em julgamentos. Seu cinema sempre foi marcado por uma forte reverência pela figura materna e pela capacidade de parir. Afinal, nem todo mundo filma seu próprio parto. Retratando a história logo após o prazo para o aborto seguro, ela evita a discussão mais moderna a respeito, evitando uma comparação com filmes americanos sobre o tema tão presente hoje. Mas isso não significa, de forma alguma, que seja uma abordagem conservadora ou republicana. True Mothers é uma carta de amor à maternidade do ponto de vista pessoal, sem tentar discutir o que é certo e errado, e também sobre o processo feminino em tudo isso, mostrando os motivos que podem levar alguém a rejeitar o status de mãe, algo considerado impensável na superfície da visão histórica humana. Nem todos estão preparados e não é só culpa deles. Há, quase sempre, eu diria, apesar de não ser mãe, algum significado profundo por trás de cada opção.

A divisão da narrativa em duas linhas, de fato, pode ser interpretada como um perdão e explicação para a gravidez precoce e a impossibilidade de escapar dela como uma penúria degradante. O preconceito dos pais em esconder o acontecido, o distanciamento do namorado - embora a diretora nem tenha apontado o dedo a isso, destacando mais uma covardia juvenil em um ato inconsequente do que perversidade ou egoísmo,mesmo que estes sejam evidentes.

Por esse motivo, o arco de Hikari (um nome que significa luz em japonês) é mais interessante e envolvente do que o de Satoko. A menina tem seus dois estágios contrastados no jogo de imagem e mise-en-scene: da aluna uniformizada, sorridente e retratada por muita luz e cores suaves, à (ainda jovem) mulher amadurecida à força com cabelos e unhas pintadas, sem iluminação e com um olhar vazio e perdido. Aju Makita, de apenas 18 anos, retratou bem no cinema de imagens de Kawase o calvário da garota.

Embora pretira o texto à imagem, Kawase segue uma tendência de seu cinema a partir desta década de apelar para um melodramatismo que às vezes contradiz a poesia e a sensibilidade de seu estilo consagrado, que ela claramente ainda tenta replicar justamente por causa de essa predileção pelos personagens acima da história, reflexos exaustivos e pillow shots, herdados eternamente de Mestre Ozu. Se a trágica história da gestante precoce não precisaria de nenhum reforço dramático para a trajetória que sua vida toma com a notícia de que um feto está carregando, Kawase muitas vezes ultrapassa o limite de closes e o fluxo de emoções, algo que tem minado muito o alcance de seus filmes, mas que ela já mostrava como evitar no início de sua carreira. Os motivos para persistir nesta escolha talvez sejam uma melancolia mais desesperada e expressiva de uma velhice que se aproxima, algo que tenho visto muito em meus pacientes, contrastando com a visão social de que o tempo traz compreensão e silêncio. Às vezes, as rugas chegam acompanhadas de um desejo maior de serem notadas.

Cinematograficamente, porém, há uma perda. E isso enfraquece ainda mais o arco de Satoko e Kurihara, em sua desconstrução para aceitar o destino e adotar uma criança contra todos os estigmas, uma ação bela, mas bastante idealizada e inocente, portanto distante do observador, em contraste com a própria e real dor de Hikari.

True Mothers é sensível, bem atuado e cheia de bons momentos. Mas a impressão é um pouco frustrante, de que existem dois estilos que não se encaixam: a mulher apaixonada e ávida pela maternidade; e aquela que tem isso imposto a ela, quebrando todos os seus planos. E mesmo por isso, afetam o resultado um do outro.

--------

O Filme Subsequente de Borat: Entregando um Suborno Prodigioso ao Regime Americano para Beneficiar a Nação que já foi Gloriosa do Cazaquistão (2020) -  Jason Woliner

Cohen é um gênio. Mesmo sendo mais didático que o primeiro - quase inevitável nesse caos que vivemos hoje, um pouco alem da iminência de 14 anos atras -, ele transforma e adapta seu Borat muito bem não somente no ethos contemporâneo da sociedade ocidental atual, como usa da iconicidade de seu personagem para criar humor. Nisto, o filme, apesar de perder força e levantar dúvidas em várias cenas encenadas, ganha mais poder narrativo.

O mundo hodierno se tornou absurdo demais até mesmo para Borat. Sua caricatura ultrajante encontra ressonância e alinhamento com massas de pessoas "comuns", cidadãos de bem. Ele se torna, inclusive, piada por sua espécie de inocente ignorância, o que ressalta ainda mais a monstruosidade na estupidez ideológica republicana estampada no manual comportamental destes. Seja no comício, na entrevista com o amigo de Trump, na conversa com o cirurgião, a influencer ou o evento anti-quarentena, Borat se torna quase inofensivo e sua comicidade alienada e culposa ganha seriedade no contraste com a sobriedade com que atos e falas nitidamente imbecis e que expõem a contradição moral e cognitiva das pessoas são expostas até o humor se esvair e o medo do que tem acontecido ser evidenciado.

Parece ridículo e podemos rir no começo, até perceber que esses nojentos, abusadores, ideias, são bem reais, representados e normalizados por aí. Cada vez mais. E é muito fácil se imaginar este filme acontecendo no Brasil.

A sequência de Borat, então, se assume como um documentário da nossa completa estupidez como seres. E como isso nos destruirá, por mais otimista que ele tente ser ao final.

-------

A Bruxa de Blair (1999) - Daniel Myrick, Eduardo Sánchez

Eles nunca vão superar isso, vão?

Alguns found footage funcionam maravilhosamente como um cinema de gênero. Mesmo o remake eu achei muito assustador. O clímax me fez acreditar em Deus por alguns minutos. Sou fã do formato e nunca deixa de me assustar o realismo e o espaço de profundidade próximo da câmera, como se qualquer coisa pudesse aparecer quando ela girar.

Mas o BWP original é diferente, como exercício experimental, mas também como uma brincadeira cinematográfica. Ele me lembra de "It Happens At Night" considerando o tema de ter medo do próprio medo. O filme nunca mostra nada. Até mesmo os ruídos. Na maioria das vezes, só percebemos porque os personagens falam sobre isso. Reagimos a suas reações. Temos medo porque eles têm. Eu li muito sobre como o filme é frustrante por causa do final. Quando estamos prestes a ver alguma coisa, a bruxa ou o que quer que seja, de repente congela e encerra. 

Mas essa é a genialidade disso tudo. O cinema de terror é sobre injetar adrenalina artificial dentro de nós nesta zona segura de uma sala de cinema ou de uma sala simples. Isso é o que torna o gênero tão atraente, e ninguém chegou perto de atingir o nível original de Blair Witch de brincar com imagens e psicologia para alcançar um controle total sobre nossas ansiedades e expectativas. Não é a visão explícita do mal, o jumpscare, mas como o sentimos subjetivamente por meio de nossas crenças e medos inconscientes.

O filme é, então, um playground do poder do audiovisual para nos incutir emoções e sensações.

É surpreendente.

--------

O Diabo de Cada Dia (2020) - Antonio Campos

Sou muito propenso a gostar desse tipo de filme, uma espécie de mistura entre "The Place Beyond The Pines" e "Reflecting Skin", com o enredo interconectado e o estilo sombrio do primeiro, e a obscura, rural e ameaçadora perda da fé do último.

Definitivamente gostei. Mas, ao mesmo tempo, é frustrante como isso poderia ter sido melhor sem algumas escolhas tolas e inocentes. Com isso, quero dizer principalmente a narração. Apesar de ver um motivo narrativo para isso, como o filme assume um ciclo interminável de violência através de um estudo da natureza humana, então a voz é como Deus estabelecendo os inevitáveis ​​caminhos tristes e ásperos que nossa vida segue, considerando como em nosso mundo esquecido por Deus. parece que a violência te apanha se você não a encontrar primeiro, às vezes faz com que as cenas tenham um tom cômico, o que distrai muito.

Sem esse observador onipresente, acho que o enredo íntimo e silencioso se beneficiaria em alcançar um estudo transcendental sobre personagem e, com isso, um conto humano mais profundo e envolvente de decadência e desolação.

Nada ilustra a intenção do diretor como o aviso de rádio do envio de mais tropas ao Vietnã, uma geração que cresceu entre as guerras (Primeira Guerra Mundial - Vietnã) sabendo nada além de desgraça e morte. E a falta de realismo causada pela narração prejudica o efeito final.

Amei Harry Melling como o pastor neopentecostal, bem grandiloquente e afetado como os da vida real. Está provando ser um ótimo ator em papéis coadjuvantes.

--------

E é isso. Vocês encontram mais textos e podem me seguir no Letter clicando aqui

Nenhum comentário