Minari, Nomadland, Irresistible, Fukuoka, Another Round - Textos Letterboxd

Dando sequência ao quadro de onde tiro textos publicados primariamente no Letterboxd, hoje deixo com vocês as reviews destes 5 filmes, dois potenciais contenders a todos os principais prêmios da temporada, um dos favoritos ao Oscar de película estrangeira, e outras duas obras subestimadas. 

Os textos estarão dispostos em ordem de publicação.

Another Round (2020) - Thomas Vinterberg

"Envelhecer é um Massacre", disse Almodóvar sobre Dor e Glória.

Eu gostaria mais que o filme seguisse a toada dos primeiros vinte minutos, sobre um homem que começa a perceber agora os vestígios do tempo nele, um contraste muito bem produzido com a introdução. Do jovem cálido e caótico, ao adulto melancólico, indiferente e soturno.

Mas isso é uma expectativa umbrosa minha. O longa, uma boa mescla entre o velho, autoral e introspectivo Vinterbergh com o contemporâneo mais convencional, algo similar com sua outra parceria com Mikkelsen, The Hunt, apesar de fazer uma espécie de homenagem ao álcool e à cultura dinamarquesa de consumo de bebidas (34º país mais "bêbado" do mundo, num ranking que achei na internet sem nenhuma garantia de confiabilidade), se interessa mais nos aspectos pessoais de como chegaram ali. Não para onde vão.

A partir daí, ele segue meio irregular, caindo em um pseudo-moralismo dos excessos do álcool, algo bastante anacrônico nos dias de hoje (não que não tenha espaço na sociedade atual, somente uma discussão que parece já ter sido há tempos soterrada por outras tantas temáticas sociais frutas da sociedade moderna). O filme brilha mesmo no primeiro e terceiro ato, ao abrir e fechar a narrativa conversando sobre a anemia interpessoal que leva o sujeito a buscar refúgio na falsa segurança provocada pelo álcool. Homens rumando para as décadas finais de suas vidas, estagnados e sem muita perspectiva de mudança, já outras pessoas em relação ao que foram um dia, esvaziados pela rotina modorrenta. O Casting é essencial pelo charme e carisma dos personagens, visto que o foco e desenvolvimento se apoia e norteia bastante pela vida de Mads, espelhando seu comportamento pré e pós-experimento nos outros, como um gatilho de mudança e então autodestruição.

As obras do diretor sempre terminam de modo ambíguo entre a esperança e a tragédia, mas desta vez senti uma real chance de reinvenção pela catártica dança da libertação do protagonista como um ritual de passagem. Nisto, destoa bastante daquele meio que divaga entre o "beber é ruim" e o "mas bebemos porque a vida é uma merda", somente assumindo a naturalidade do ato e não o condenado.

Assim como tudo, é a natureza humana que transforma um artifício em auxílio ou maldição.

Fukuoka (2019) - Zhang Lu

Filme muito, muito Murakamish. Mais do que qualquer adaptação real dos livros do autor, aliás. Começa muito semelhante às obras de Hong Sang-soo, mas felizmente evita seus maneirismos e truques e segue seu próprio caminho; uma história naturalista (os atores até usam seus próprios nomes), mas com uma forte vibração surrealista e melancólica. Talvez seja um filme regular de Zhang Lu, mas como é o meu primeiro, não posso dizer. Certamente acompanharei mais de sua filmografia, é claro.

O primeiro quadro do filme mostra Je-moon, dono de uma livraria de meia-idade dormindo sobre seus livros no fundo da cena. A profundidade de campo o rodeia por estantes de livros. Ele ouve vozes sussurrando coisas para ele, mas além dele, a única presente ali é uma garota sonhadora e "maluca" que o convida para visitar Fukuoka. Ela faz isso, em primeira mão, inocentemente. Mas ele tem negócios na cidade japonesa, porque lá mora o homem cujas vozes atrapalham seu sono. E ela revelará saber muito mais do que o esperado também.

Em Fukuoka, os dois ex-amigos entram em conflito sobre uma briga no passado que os impediu de se falarem por 28 anos. Um amor perdido, mas que não conseguem esquecer e culpam um ao outro pelo desaparecimento da garota.

Mais tarde, eles visitam uma livraria local. Lá, é a garota, So-dam, que reage de maneira estranha. A dona dá a ela uma boneca que ela disse que So-dam deixou lá no ano passado. Mas So-dam afirma que é sua primeira vez no Japão. Ela se isola e começa a resmungar sobre sua mãe, que, descobrimos depois, a abandonou para fugir com outro cara. Seu pai era, supostamente, um sujeito de bom coração, mas silencioso e ausente. Uma alma apática.

A princípio, o filme parece um conto de redenção. Mas as coisas se tornam mais peculiares e estranhas conforme avança. Realidade e fantasia se misturam. Traumas começam a chegar à superfície, mas nunca de forma melodramática ou explícita. Os dois caras passam cada vez mais tempo um com o outro. Eles estão sempre reclamando e sendo rudes, gritando, agindo com rancor, mas parecem gostar da presença um do outro. As memórias são difíceis de superar, no entanto.

Paralelamente, o arco de So-dam é o de um anjo arquetípico, ou musa, destinada a acalmar e ajudar os outros nos desafios internos. Ela não fala muito e, frequentemente, o faz com palavras estranhas e incompreensíveis. No entanto, ela parece compreender os outros melhor do que eles próprios. Ela diz apenas falar coreano, mas se comunica normalmente em chinês e japonês. Reconhece também as raízes das promessas ou demônios das pessoas. Mas ela também tem seus próprios espinhos, sua própria história.

O uso recorrente de livrarias, em Seul e agora em Fukuoka, vejo como uma alegoria de tempo e memória. É por isso que o primeiro quadro é assim. Je-moon está rodeado de livros, e o que são os livros senão uma coleção de experiências e lembranças congeladas pelo tempo? Ele ouve a voz de seu velho amigo e lamenta um evento de quase três décadas. Mais tarde descobrimos que ele e Hae-Hyo dedicaram suas vidas e decidiram seus caminhos em empregos e cidades associadas com a garota que eles não podem esquecer. Eles estão oprimidos e sufocados pelo passado, incapazes de colocá-lo para trás. A torre central de Fukuoka é uma reminiscência onipresente do grande elefante pelo qual estão perdendo suas vidas. Não importa onde estejam, ela é sempre visível e imponente, apontando para o
céu.

So-dam, porém, jovem como é, mesmo com seu passado conturbado, deixa a boneca para trás. Ela reconhece o problema, mas nunca estagna com ele. É e para sempre será uma parte dela, mas não determinará suas escolhas de vida. O problema da sociedade é a falta de comunicação. E ela é a corda para firmar os nós. Tudo o que vemos são homens e mulheres sentados, quietos, sozinhos, com rostos sombrios, esperando que alguém os alcance, mas sem iniciativa.

No final, liderados por ela, os três finalmente escalam a torre, e ela liga para a velha livraria, onde os dois velhos e seus amores costumavam passar o tempo, e agora um deles é dono. Eles estão em Fukuoka, mas os fantasmas e as memórias permanecem lá, rastejando e encolhidos nos cantos, escondidos nos livros cheios de acontecimentos passados. Cobertos de poeira.

O telefone toca. É hora de acordar.

Irresistível (2020) - Jon Stewart

Então, o que aconteceu aqui? Americanos se sentindo mal pelo dedão na cara. Considerando a ampla maioria democrata ou de esquerda desse site, é de se considerar. Tivesse o filme saído após a espalhafatosa eleição 2020, qualquer crítica negativa que vejo seria descartada por contraposição factual. Uma exposição ao vivo do ilimitado mundo dos absurdos políticos.

Eu gosto desses filmes, a me lembrar de Chicago 7, que divagam entre a seriedade num tom brincalhão sobre um assunto primordial, justamente para escrachar, através de piadas, a obscenidade da realidade. É tudo tão absurdo e que poderia quebrar a imersão, não tivesse você a noção comprovada do quão verdadeiro tudo ali é. A disputa de egos acima de qualquer valor, reforçando uma imagem contradita por eles mesmos em pontos chaves do filme.

Irresistible é uma fábula sobre a consolidação da sociedade do espetáculo descrita por Debord. A imagem e o símbolo por trás dessa mais validados que a própria intenção. Nada conversa melhor que isso que a cena do jantar e as falas de Cooper. Por mais óbvio que seja constatar isso e desmerecer o filme por sua atitude good vibes, não deixa de ser uma obra muito pontual sobre esse cenário, em que a própria contagem de votos se tornou um evento de entretenimento monitorado pelos conglomerados de mídia, até mais interessantes que o próprio resultado, considerando que, novamente, nas últimas décadas, fora discursos e falas vazias, não há muita diferença nas atitudes concretas de democratas e republicanos.

Até poucas décadas atrás, nem havia essa distinção atual dos dois partidos, em que um se fortalece e agradece a existência do outro. Ver os personagens de Rose e Steve se pegando nos bastidores nesse ensaio sobre amor-ódio é hilariante para expor a verdade dos fatos. Enquanto nós nos matamos, brigamos e estressamos, para eles, ambos os lados, é tudo uma grande encenação para angariar dinheiro de milionários ou bilionários, numa atualização capitalista das vendas de lotes do céu da igreja para os crentes. Eles se sentem bem explorando e aumentando a desigualdade por trás de um selo frágil de progressismo.

Nomadland (2020) - Chloé Zhao

Chloé Zhao filma a natureza e as paisagens americanas com uma reverência contemplativa. Como em The Rider, o ambiente natural e primitivo do interior serve ambiguamente como um terreno inacabado, belo e infinito para espelhar a complexidade intangível dos personagens.

Porém, com a convergência dos dois filmes e dos dois protagonistas em The Rider e, agora, Nomadland, ao assumir o trauma como fio condutor da narrativa, o cenário americano também pode ganhar contornos opressivos e inférteis que potencializam a solidão das figuras. Essa solitude, no entanto, exteriorizada por campos e desertos desabitados, são buscas deliberadas para escapar de uma civilização predatória, tirânica e desconectada.

Em Nomadland, a crítica ao desenvolvimento sufocante surge nos primeiros frames, quando um edifício da Amazon surge imponente como estandarte dos novos EUA, engolindo os trabalhadores em seu interior frio e espaçado. O azul da melancolia contrasta com a imensidão do oceano e do azul celeste em que a personagem de Frances se enquadra em outros momentos mais catárticos. Não seria necessário, mas saber que a riqueza de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, aumentou 65% entre março e setembro (mais de 70 bilhões), enquanto milhares de funcionários foram dispensados ​​para "contenção" de despesas, além do cofrinho do site para arrecadar dinheiro, torna muito funcional escolher a empresa para compactar a decadência americana - ou a sociedade ocidental - por meio do capitalismo desenfreado.

A fuga da personagem, então, não é apenas de seu passado doloroso e cheio de memórias inalcançáveis, mas da própria sedentarização emocional e humana da civilização. Chloé também escapa da romantização da vida nômade, reforçando os muitos contras e as dificuldades de viver na estrada, mas
abraça a empatia e a solidariedade de quem adota esse estilo de viagem.

Apesar de adotar as diretrizes tradicionais do indie-road-movie, a diretora só escorrega realmente na insegurança de não permitir que as imagens, performances e fotografia estabeleçam conexão emocional suficiente com o público, transmitindo a mensagem por meio da dor e da compaixão, apelando para uma trilha tocante, mas manipuladora, para criar uma atmosfera sombria e taciturna desnecessária.

Mas ainda é um grande exercício e validação para essas pessoas esquecidas e abandonadas. Mas não para seus entes queridos, mas pelo próprio país.


Minari (2020) - Lee Isaac Chung

Considerando uma disputa entre Minari e Nomadland na temporada de premiações, primeiro estou satisfeito em ver duas obras minimalistas e introspectivas chegarem firmes e favoritas nesta época do ano, quando filmes independentes e pequenos tendem a ficar para trás de "falsos indies" manipuladores e grandiloquentes, com produção e orçamento de um blockbuster. Uma coisa boa proporcionada por este vírus, ver uma valorização primordial de um cinema mais puro e sensível.

Existem muitas semelhanças atmosféricas entre eles também. Mas fico com Minari, numa “Escolha de Sofia”. Não pretendo criar uma rivalidade estúpida aqui, mas pela personalidade e construção das histórias. A essa altura, todos já sabem que se trata de um trabalho semibiográfico do diretor Lee Isaac Chung, que esperou mais de 10 anos de carreira e 4 filmes para contar sua história. Amadureceu seu repertório técnico, mas também a absorção emocional daquele período. A simplicidade e a ovação com que retrata tudo o que aconteceu no seu passado, incluindo as inserções ficcionais, são meramente transitórias e naturalistas, precisamente o aspecto mais inseguro e estonteante do esforço de Chloé Zhao, que incutiu um peso melodramático na trilha. Lee, no entanto, confia puramente na imagem e no texto. Na memória.

Seria fácil transformar Minari em uma obra de conteúdo político, ainda mais no final do bárbaro governo Trump, que fez sua fama e simbolismo pela xenofobia. A arte geralmente não tem medo de criticar a atemporalidade de um defeito congênito, afinal, não seria anacrônico comentar o preconceito americano contra estrangeiros. Ainda mais em uma narrativa que se passa inteiramente em um ambiente rural e conservador. O próprio pai da família, interpretado por Yeun em um papel que lhe renderá o reconhecimento ausente em Burning, no entanto, é um homem conservador. O trabalho de Lee é moralmente cristão na forma como ele estabelece a família como o pináculo de tudo. E Jacob, o patriarca, parece esquecer disso em certos momentos da trama, afinal, mesmo que diga - e não duvidamos - fazer de tudo para o bem de todos, o componente do orgulho patriarcal masculino em proteger e prover para sua família lhe é mais caro do que a maleabilidade e a aceitação do egoísmo. A figura da mãe, no entanto, tem seus defeitos, e o celeiro em chamas serve de purga e expiação para que percebam o amor vivo e a prioridade que deu início a tudo, agora ligeiramente nublado por anos de trabalho duro e instabilidade financeira.

Com dois filhos bilíngues, falando inglês e coreano, sem uma definição exata de quando usar qual idioma, a família passa por uma crise de identidade na nova terra. A necessidade de criar raízes contrasta com a baixa insistência em se misturar e socializar, e o próprio objetivo do pai é ganhar dinheiro vendendo comida para outros imigrantes coreanos.

O cineasta não está interessado em discutir cenários sociais ou políticos diretamente, mas simplesmente espelhar sua própria história e, nesta, o próprio significado do sonho americano. A força do discurso é justamente a falta de pressão sobre o tema, em retratar com ternura e paixão uma família de coreanos como qualquer outra, com peculiaridades culturais, sim, mas mundanos, sofridos, cheios de amor e sorrisos, mas também brigas, doença e morte.

No final das contas, o interesse de Chung é puramente humanitário. Sem julgamento. Casas queimam. As plantações secam. Os vegetais murcham. Onde estão nossas raízes, então? Naqueles que amamos. Assim como a Minari, a erva, originária da culinária oriental, mas adaptável a qualquer região e clima. Precisa de um estímulo, mas se desenvolve espontaneamente. É resistente e tem múltiplas funções. O importante não é para onde levá-la, mas simplesmente tê-la consigo.

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E é isso, meus queridos e idas. Me sigam no Letterboxd para mais dicas e reviews. 

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