Vidas Passadas (2023) - Crítica

O começo de Past Lives, no original, num flashforward aparentemente desvinculado de qualquer contexto, acaba por condensar toda a discussão do filme, quando numa perspectiva de 3ª pessoa, um casal comenta sobre qual o papel social de cada indivíduo numa mesa em que se sentam dois coreanos e um americano - Nora e Hae Sung, os protagonistas, e seu marido. É uma brincadeira de especulação que ganha rapidamente ares de "e se". Quem é quem, mas e se fosse diferente? Qual a história daqueles três? 

Narrativa semibiográfica da diretora e roteirista Celine Song que segue uma família que imigra da Coreia do Sul para o Canadá, e posteriormente focando na protagonista Nora, que se muda para Nova Iorque, Vidas Passadas, em certo momento, introduz o conceito do In-Yun, providência ou destino, em que duas pessoas serão interligadas pela eternidade, não necessariamente romanticamente, mas de alguma forma, sendo o casamento uma espécie de "ápice", acúmulo de muitas camadas do In-Yun. 

Muito mais do que um romance de final feliz, entretanto, Celine Song transforma Vidas Passadas numa meditação sobre metamorfose, sonhos e escolhas. Longe de uma idealização, e sim uma fábula realista não sobre a vida que sonhamos, mas a que podemos e escolhemos ter. O direcionamento para o cinema de gênero acaba sendo o modo mais cinematográfico e sensível, numa variação temática similar a Minari, de contar tal história, de tudo que deixamos pra trás e todas as vidas alternativas que abdicamos e jamais saberemos o resultado. A opção não é lamentar, e nem esquecer, mas aceitar, perdoar e seguir em frente, mesmo sabendo que tais pensamentos sempre estarão lá para ressurgir. 

Song constrói Vidas Passadas como um pensamento intrusivo e persistente. Por mais que Nora se mude de país, de nome e posteriormente corte relações, forçadamente, com Hae Sung, a mácula do primeiro amor é constante, mesmo que nem sempre intensa. E Song evidencia isso tanto nos momentos em que os dois dividem tela e o espaço-tempo quanto quando estão separados. Quando conversam pela divisão de uma tela, com as limitações das bordas de hardwares que encarceram os dois e jamais afugentam a realidade do quão distante estão; ou quando, mesmo juntos, são separados pela barra de um metrô, que os divide, por mais que tanto sonhem numa aproximação agora inviável - o detalhe das mãos, tão perto mas sem se tocar, é um detalhe genial e dolorido de Song perante as escolhas que ambos tomaram e como isso condiciona seu presente e futuro.


Se na convenção de gênero o esperado seria o amor proibido e impossível se realizar no dramalhão, Song conquista um sentimento muito mais poderoso e intenso através da introspecção de seus protagonistas, que tanto dizem através dos olhares e gestos, numa autoconsciência resignada de uma via que não parece mais ser possível. Ou que não estão dispostos a arriscar. Os idealismos do romance são substituídos por uma serenidade melancólica que não desmaterializa o amor, mas o reivindica dentro de um cenário factível. Racional e calmo. Coletivo, mas individualizado. Compartilhado sem perder a identidade. 

O próprio texto brinca disso através do personagem de Arthur, que reconhece o quanto não pode competir com a narrativa de Nora e Hae Sung. Se a história do cinema nos ensinou a esperar a traição, a fuga, Song provoca e flerta, mas tal caminho nunca de fato soa viável. E o personagem, marido de Nora, é outra quebra de arquétipo em que Song discute um caminho mais maduro para o que seria normalmente caracterizado como ciúmes. É a compreensão e a confiança que permitem a vulnerabilidade sem buscar a chantagem emocional, mas o mero desabafo só concebível no conforto de quem temos a mais honesta e profunda intimidade. 

Ao fim, Song não tem uma resposta - e nem busca concluir nada - sobre o certo e o errado para os trilhos que tomamos. Ela somente aceita o quão tortuosa, mas também bela e complexa pode ser a caminhada e como moldamos nossa vida através de nossas escolhas, no que Sartre descreveria como a maldição da liberdade. Mas o que tornaria a existência tão poética, imprevisível e fascinante do que isso?! 

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