O Agente Secreto (2025) - Crítica
O Agente Secreto é um filme que brinca com expectativas do início ao fim, a começar pelo título. Uma direção e escolhas de um cineasta em completo domínio e confiança no que quer contar. E como. Sem se interessar pelo convencional, Kléber parece ter dirigido e juntado repertório em sua carreira até aqui para reunir habilidades para realizar seu novo filme — o que quer dizer muito, considerando o alto nível de sua filmografia.
Brincar com o espectador através do material de divulgação e um início tenso que conflita o personagem principal, vivido por Wagner Moura, e a polícia, ressaltados por cada elemento da mise en scène, mas também do extracampo. Talvez por isso a introdução, que já é brilhantemente elaborada individualmente, desempenhe um papel tão fundamental para resumir o que virá a seguir, em mais de duas horas e meia.
Um corpo que apodrece no terreno de um posto, em escaldante verão, enquanto um melancólico funcionário é obrigado a aguentar o odor e o calor em meio a um período festivo; a polícia mais interessada em extorquir o cidadão comum do que resolver um crime. E, é claro, nosso protagonista, de olhar cauteloso e desconfiado enquanto tem seu carro investigado. Qual seria nossa interpretação da cena não fosse o capcioso título? Talvez a mesma; afinal, no ensejo da ditadura, em poucos diálogos, a composição do quadro já reafirma a tensão e a insegurança do período — a princípio contra quem deveria providenciar justiça.
Com muita parcimônia e prazer, como que regozijando a sua criação idealizada e nostálgica da Recife à época, sem pressa para se desfazer dela, Kléber conduz uma orquestra à brasileira, caótica e cheia de energia, como um coirmão de outro grande filme revolucionário deste 2025, Uma Batalha Após a Outra. Filmes menos inclinados a uma frontalidade explícita de suas intenções, mas evidentes e ainda mais incisivos pela forma como decidem cozinhar os elementos que geram, lentamente, indignação, empatia e compaixão.
Agente Secreto acaba sendo tanto complemento quanto contraponto a Ainda Estou Aqui, sobre as vidas deixadas para trás pela corrupção e banalização da violência vivida no período. Sem refletir o ativismo direto contra o regime, fica escrachada a vulnerabilidade do cidadão comum contra a opressão e censura de uma elite que não precisa de razões concretas para destruir qualquer um em benefício próprio.
Ainda que a fita de Walter Salles seja mais polida e sóbria, Kléber encontra a mesma resposta que o companheiro cineasta para a resolução em se manter contra períodos assim: nas pessoas. No companheirismo que surge entre estranhos em meio ao desconforto; no amor que aflora e na esperança que nos mantém de pé mesmo quando não parece haver motivo para tal.
A identidade de Kléber está em abraçar o folclore e a paixão de sua região para compor os contornos da vida e dos medos de seus personagens. Da perna cabeluda, eternizada e nacionalizada nas palavras de Chico Science, ao carnaval e ao mágico cinema São Luiz, templo imortalizado pelos Retratos Fantasmas do mesmo diretor, tudo cheira a brasilidade com orgulho e fervor. É reconhecer o pior e o melhor dos que nos representam, na esperança de que, ao fim, a alegria do carnaval seja maior que o terror e o ódio da ditadura.
Pode-se criticar a opção narrativa para expor o encerrar da trama — por estilo e conceito, é claro. Ainda que faça sentido dentro da proposta de frisar o esquecimento e a frieza que foram o destino de tantos naquela época. Além de anticlimática, há uma sensação de frustração e traição por não termos acompanhado o final de alguém por quem torcemos e que seguimos por quase três horas. Talvez seja o ponto mais claro e visceral em que Kléber adota o discurso e a mensagem sobre o entretenimento da arte.
Sem romantismos, Kléber encara as feridas que jamais fecham e as vidas para sempre desviadas por essa perversão da própria humanidade. A memória acaba sendo um ato de resistência — dos que sobreviveram e, sobretudo, dos que vieram depois, carregando ecos de um trauma que não testemunharam, mas que ainda pulsa. É por isso que filmes assim permanecem vitais: em tempos em que a história flerta em se repetir e tantos, iludidos por uma elite e por uma mídia complacente, consentem no próprio sufocamento, recordar torna-se um ato de honra aos que tombaram e um obstáculo para que não sejamos obrigados a reviver o que deveria ter ficado no passado.
Filmaço. Teve a sensação de algo vago? Me senti acompanhando todo aquele universo. As vezes não sabia bem o que estava vendo, apenas adentrando os arcos esperando os rumos dos personagens. Tão bom que se durasse mais eu não me incomodaria. E que baita final. Não costumo gostar do anticlimático, mas aqui achei a ideia muito bem feita.
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