Cruella (2021) - Crítica

Qual o limite da humanização? Começou com Malévola, atingiu um ápice com o Oscarizado bilionário, o Coringa, e agora assume a onda da tendência com Cruella de Vil, a icônica antagonista do clássico 101 Dálmatas. O nosso fascínio com vilões é antigo. Cinematograficamente, é conveniente notar que um Darth Vader se tornou mais simbólico de sua franquia que qualquer mocinho. Tony Soprano e Walter White, igualmente, não são exatamente caras bacanas. O que nos atrai? Dizem estudos psicológicos que o carisma está nas suas falhas de caráter, que nos aproximam mais do que dos heróis costumeiramente unidimensionais, rejeitando uma simplificação de caráter inconquistável a qualquer mortal. Para não adotar uma ideologia completamente vil, então, o meio-termo é o anti-herói, que pratica o bem numa área cinza, adotando um comportamento mais inescrupuloso e prático. É por isso que Demolidor e Batman são mais contemporâneos que Superman. 

Mas há um limite nesse reconhecimento e vivissecção que busca reconstruir um caso a partir de uma figura tida como maléfica, numa era que clama por razões e justificativas para o extremo? Se sim, esse provavelmente seria o assassínio de animais, especialmente pets. Hirohiko Araki, o mangaká de JoJo's Bizarre Adventure, explicando por que um de seus vilões costumava matar tantos bichinhos, foi sucinto em dizer que nada facilitaria mais para gerar antipatia ao personagem do que fazê-lo ser cruel com cães e gatos. É uma ideia certeira. Eu mesmo dou 0.5 estrelas no Letterboxd a qualquer filme que mate um felino em sua duração, por melhor que este seja. 

cruella emma stone

A ideia de conferir um coming-of-age solo a Cruella, então, já nasce acoplada a esse questionamento, de como seria a "passada de pano" para sua conhecida característica de ser apaixonada por roupas confeccionadas com peles de animais, insensível a chacinar 101 pequenos dálmatas para montar seu vestuário. A resposta do longa não demora nem 10 minutos, ao dar à garotinha um cachorro vira-lata adotado por ela e seu único companheiro de infância, mas também parceiro durante toda a projeção. A vesti-la na roupa de uma anti-heroína. É uma abordagem previsível, mas também necessária, tanto para se adequar ao espírito do estúdio, quanto para qualquer viabilidade de torná-la uma personagem agradável e relacionável. 

Driblando esta questão, o tom adotado para Cruella é até mais dark e obscuro que o típico da Disney, mesmo nesta toada recente, tanto no visual quanto na temática, mas por mais que nomes envolvidos em "Eu, Tônia", do diretor Craig Gillespie, e "A Favorita", de um dos roteiristas, Tony McNamara, a assinatura mais visível é de outra escritora do longa, Aline Brosh McKenna, de "O Diabo Veste Prada", de quem Cruella mais bebe e se assemelha, readaptando e contextualizando já desde cedo o gosto de Cruella, nascida Estella, pela moda na Londres dos anos 70. Como no mundo deste predileto da sessão da tarde, Cruella encontra uma nova obsessão e, principalmente, toda sua narrativa apoiada numa rixa entre a protagonista e sua nêmeses, a Baronesa de uma psicopática Emma Thompson, uma versão mais radical de Streep em "Prada". Sim, pois Cruella também possui uma vilã para ela, e que neste caso não é alguém de boa índole lhe confrontando, e sim uma figura que segue a cartilha literária de criar alguém pior para justificar um mal menor. 

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E aí entra o tom umbroso de Cruella, pois se ela sempre fora retratada como alguém excêntrica e heterodoxa, a atitude da personagem, em certa altura, parece se encaminhar para um vilanismo mais puro, uma obra do meio, em temática filosófica que bem explica suas atitudes Rousseanianas, nascendo boa e sendo punida por isso, corrompida por uma sociedade que compensa mais a perversão e desumanidade do que a bondade e empatia, radicalizando uma personalidade rebelde, mas não hedionda. É um retrato social bastante exato que mostra como o cinema pessimista, flagrante e beligerante da presidência Trumpiana não vai ser abandonado pela eleição democrata de 2020, afinal, o legado segue lá, forte, com seus discípulos confiantes e certos da impunidade e crescimento de seu pensamento. 

E nisto, Cruella garante o jargão pelo qual foi conhecido desde o anúncio, como o "Joker da Disney", ao desenhar uma piscina filosófica e psicológica para discutir antropologia no modelo freestyle blockbuster, adotando o absurdo e contando com um bom trabalho técnico por trás das reviravoltas novelescas e de ocasionais planos-sequência sem nenhuma camada fora a pura estética. Nada que os hipnotizantes olhos de Emma Stone não contornem. É o figurino diverso e deslumbrante de Jenny Beavan, bicampeã do Oscar e encaminhada para sua 11ª indicação, que mais diverge da abordagem genérica para tentar expandir sua personagem e conversar com o público, tudo sem abdicar do deslumbre visual. 

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Embalada na atuação divertida, despojada e irreverente de Stone e seus comparsas, Paul Walter Hauser (Horácio) e Joel Fry (Jasper), Cruella transiciona entre o absurdo com pitadas de comentários para lá e para cá, CGIs duvidosos de cães e um desapego da realidade como quem busca fugir, mas é atraído por um espelhamento político. Nada mais moderno do que desconstruir novas facetas e tornar alguém vendido como vilão em herói, oferecendo uma redenção e recomeço alternativo num mundo de caos, terror e solidão. E a humanização não passa por uma purificação branca e plana, mas sim pelo emponderamento de suas falhas. Numa sociedade polarizada, é preciso enxergar e reconhecer o equilíbrio. 

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