Como o Personagem Goh Contradiz a Identidade Pokémon

Ah, Ash, Ash. Pokémon é um anime no ar quase ininterruptamente há 24 anos. Neste período, já vimos 8 gerações, quase 900 monstrinhos, muitos líderes de ginásios, campeões da Liga dos Quatro, companions e crushs. Mas somente um protagonista. Ash Ketchum, ou Satoshi (que também teve somente uma idade nesse período todo, rs). Ash passou da celulose pro digital, do rmvb pro Full HD, do domingo pra sexta. Trocou de roupas e atenuou um pouco sua personalidade. Neste período, não foi pouco o hate que o garoto sofreu, por parte da fanbase, para trocar o protagonista para alguém mais maduro, ou ligado aos jogos, que evoluísse seus Pokémon e demonstrasse habilidades empíricas de treinador. A cada nova temporada, é uma chuva de gente criticando mais uma oportunidade perdida de reiniciar a obra em um novo tom, o que fez muitos abandonarem o anime (mais por saírem da faixa-etária focada do projeto desde seu lançamento). 

Foi no início da adaptação de S&S, nova geração da saga, que o personagem Goh foi revelado. Até aí tudo normal, já que Ash sempre teve 2 ou 3 companheiros para andarem com ele, ou no caso de S&M, um grupo de colegas. Pois bem, só que dessa vez, seguindo a renovação proposta pela geração anterior, Goh foi apresentado não como um coadjuvante, mas um co-protagonista para dividir as atenções com nosso Ash, tendo um objetivo grandioso e que divide tanto tempo de tela quanto nosso veterano conhecido. 

Como diz o ditado, porém, nós não merecemos ter coisas boas. Pois quem diria que iríamos, em menos de 2 anos do início de Sword & Shield, maldizer nossos tão repetidos desejos. Pois Goh é, cada vez mais, um personagem pior que Ash. E ainda mais grave, Goh é um personagem que trai a identidade tão longeva e nutrida do anime de Pokémon. E faz isso sem um arco redentor, e sim convicção, num erro que marcará, futuramente, as vindouras temporadas do anime.

Mas o que exatamente eu quero dizer com isso? Pois Goh é, acima de ser um treinador ou qualquer outro termo, um acumulador. Alguém que deseja capturar todas as criaturas, findando no mítico Mew, numa visão premonitória de criança tal qual Ho-Oh com Ash. 

E o que há de errado com isso? Para responder, devemos refletir acerca do supracitado espírito de Pokémon. Pensemos. Qual foi um mantra intrínseco na obra, servindo de característica fundamental aos mocinhos da série, e ausente nos vilões, recebendo estes uma redenção ou não? A harmonia com os Pokémon. Numa adaptação de jogos que, conforme nossa cultura foi avançando e adquirindo mais consciência social, surgiu um problema na equação: Pokémon é, em suma, sobre estimular a briga de rinha entre animais. É fácil achar na internet debates e acusações sobre isso, seja de meros espectadores, seja de entidades direcionadas a combater a crueldade animal. Pokémon são equivalentes aos animais da vida real, tanto que muitos são usados para funções equivalentes, como Tauros puxando cargas, ou então lutadores empregados em trabalhos manuais. Porém, com uma diferença primordial: todos são humanizados, ou levemente antropomorfizados através de seus olhos grandes e designs fofos, o que basicamente faz com que quase todos pareçam com gatos ou cachorros, os pets, animais adotados por nós, humanos, para cuidar ao invés de explorar - pelo menos em partes. E baseado nisso, é difícil evitar a ideia de que Pokémon é sobre pessoas explorando os habitats naturais desses animais, os enfraquecendo por dano físico e capturando numa bola à força, como objetos, para levá-los e usá-los como bem entenderem. E pior, frequentemente para batalhas, glamourizando a rinha. 

No primeiro jogo, se fossemos espelhar realidade com ficção, é basicamente isso. As coisas mudaram conforme as gerações e debates morais foram se disseminando. O jogo introduziu o conceito de felicidade no Pokémon, até permitir, como no anime, que andemos com um deles fora da pokébola, quebrando um pouco a sensação robotizada e de domínio de uma espécie à outra. O anime tem uma grande vantagem nisso, que é se tratar de uma mídia audiovisual, que emprega vozes, sentimentos e histórias mais complexas e detalhadas. Logo, a resposta para rejeitar as acusações caminharam para a camaradagem, evitando respingar no Darwinismo da superioridade hierárquica devido a mais recursos intelectuais. Pokémon querem e gostam de lutar - o que é, também, visto como um esporte legalizado que leva a uma liga, com regras e juízes, além de medicações e hospitais próprios. Eles fazem por bom grado, e ou os treinadores são vistos como queridos, parceiros e dispostos a tudo por Pokémon, como o próprio Ash, ou são usados justamente num propósito didático para educar acerca de como tratar os animais - como o cara que abandonou o Charmander, ou Paul, o nêmesis de Ash em Sinnoh. Ainda mais contundente para esse argumento, é mostrado, como no piloto da série, que Pokémon selvagens podem ter inveja daqueles com algum treinador. Porém, ainda tudo parece uma desculpa, ou uma forçada de barra e passada de pano para aliviar a culpa de curtir Pokémon.

Goh jamais cultivou essa relação com todos seus Pokémon

Para quebrar de vez o debate, na quinta geração, os games Black & White introduziram uma nova organização criminosa que devemos combater: o Team Plasma, cujo objetivo é justamente...livrar os Pokémon de treinadores, a quais consideram uma relação abusiva. Soa bastante contraditório, mas suas ações e principalmente o final, em que os próprio Pokémon expressam seu desejo de servirem acompanharem um mestre e se tornarem mais fortes, tentam finalizar o debate. Há consentimento pelos Pokémon, um elemento primordial para não se caracterizar a relação como abuso. É uma simplificação bastante conveniente, mas só nos resta aceitar. E bem, é um argumento para aliviar culpa.

Mas onde Goh entra nisso? Sim, ele respeita e cuida seus Pokémon. Até quando capturou alguns, foi para salvá-los do pior (Articuno, Absol). Isso não é discutível. Mas na própria essência do objetivo de Goh, capturar todos os Pokémon, é possível encontrar uma contradição ética no que tange a relação com os Pokémon. Eles querem seguir e treinar, ou viver, com um mestre que os ama. Mas isso significa presença. Porém, ao contrário de Ash, Goh é um acumulador. 

Ash ama seus Pokémon o suficiente para respeitar seus desejos

Nisto, é fácil pensar: "Mas poxa, o próprio lema de Pokémon foi, por muito tempo, o "Gonna Catch Them All". Pegar todos. Completar a dex, um dos propósitos dos games até hoje, a quem tiver paciência. Sim, mas bastante cônscio da própria questão, o anime colocou de protagonista alguém que nunca teve esse intento, e sim se tornar um mestre Pokémon - o que ainda demanda confrontos e lutas, mas novamente, com consentimento. E outra, algo primordial na diferença Ash-Goh. Ash tende a capturar somente Pokémon que ele constrói uma relação de amizade-respeito. Todos os parceiros icônicos de Ash foram conseguidos assim. Infernape, Charizard, Squirtle, Chikorita...Goh também possui essa relação com alguns Pokémon, que são amigos legítimos. Mais exatamente, o trio de iniciais de Galar: Scorbunny (agora Cinderace), Grookey e Sobble (agora Drizzile). Os três foram conquistados através de simpatia, esforço e amizade. Os dois evoluídos, principalmente, atravessaram crises de relacionamento em que houve um crescimento mútuo, e a paixão e insistência de Goh em ajudar seus Pokémon foi essencial para auxiliar seus bichinhos.

Mas aí sobram alguns...Pinsir, Beedril, Scizor, Dewgong, Greedent, Darmanitan, Magikarp, Golurk, Caterpie, Metapod, Weedle, Kakuna, Tentacool, Cubone, Spearow...Enfim, dezenas. Neste último episódio antes do lançamento do texto, número 65, é mostrado rapidamente ele capturando Pansage e Pansear. Rapidamente mesmo, em quadros estáticos e sem nenhum enfoque. Alguns de seus Pokémon recebem uma notoriedade pontual, como Scizor e Dewgong, mas a regra é ostracismo total. Esquecimento. "Ah, mas eles vivem naquele jardim gigantesco do laboratório Pokémon." Certo, mas então a captura foi para tirá-los da natureza e os fazer de reféns num ambiente menor, talvez não o natural de Pokémon específicos, convivendo com outras espécies possivelmente hostis e cada vez mais superpopulado. Se a boa-vontade de um Pokémon a ser capturado está no desenvolvimento mútuo (nem somente em batalhas, mas também nos torneios de performance, como vimos com Dawn, May e Serena), Gof definitivamente não está propiciando isto a grande maioria de suas capturas. Ele os acumula para preencher a dex e seguir seu sonho, negligenciando mais de 95% de suas criaturas e os relegando, novamente, a um ambiente fechado, anti-natural e progressivamente menos espaçoso e mais perigoso para as criaturas. É como pôr um peixe num aquário, um pássaro numa gaiola ou um cachorro num canil. A essência e beleza são oprimidas. Não há violência física, certo, mas há violência psicológica. Animais possuem uma psicologia complexa. Animais enfrentam problemas "humanos", como depressão e ansiedade, enfrentam solidão e têm sua personalidade completamente alterada em casos extremos

Um Catálogo

Em suma: Goh é uma criança imatura e egoísta que coloca animais em cativeiro, restringindo sua liberdade por objetivos narcisistas, alterando o curso natural de suas vidas, os expondo a um cotidiano de isolamento da mesma espécie, estresse, solidão e possível hostilidade. É curioso que o próprio anime, anos atrás, já havia corrigido uma rota ao alterar o sonho de Gary, o rival clássico de Ash. Mesquinho, arrogante e vaidoso, Gary desejava completar a Dex, e os anos (ou dias) o tornaram alguém maduro e sensível suficiente para dedicar sua vida à pesquisa. Goh, então, é a contradição dessa escolha, uma involução do anime.  

"Ah, mas Ash também abandona seus Pokémon antigos no laboratório após as viagens." Essa é capciosa. Bastante espinhosa. Sim, mas também não. O anime parece consciente desse problema, e por isso que vários Pokémon de Ash são soltos na natureza durante o percurso. Eles não são, como muitos interpretam, abandonados, e sim realocados em seu habitat puro e colocados num estado de relevância com um próprio objetivo, seja seguir a vida que deseja (Butterfree, Poipole, Charizard antes de voltar, Lapras), seja usar a força adquirida com Ash para beneficiar os outros (Greninja, Pidgeot, Goodra, Squirtle). Quanto aos do laboratório, é realmente de se ponderar o papel dos Pokémon após terem atingido seus objetivos, Algumas exceções podem ser abertas para Bulbasaur, que realiza uma função a qual gosta no laboratório, assim como os Tauros, que ainda habitam em comunidade. Mas Quilava, Heracross, Totodile, Bayleef e todo o resto? A explicação é simples: conexão. Ash fez amizade e estabeleceu uma ligação íntima com todos seus Pokémon, de modo que mesmo sem uma interação contínua, há laços fortes que os ligam. Eles são uma família. Como um gato ou cão que volta pra casa após sair. Tenho certeza, porém, que Ash os libertaria caso houvesse a necessidade e eles demonstrassem interesse. 

Ash e seus Pokémon são uma família

Já a Goh, falta tudo isso. Ele acumula, coleciona Pokémon como um maníaco inescrupuloso atrás de seu objetivo, não somente os raptando do ambiente a qual viviam, como estirpa o sonho de se tornarem mais fortes. Goh enxerga a dex como um catálogo a ser zerado. Ele os condena a uma semi-vida. E isso é tudo, menos a essência que Pokémon buscou construir e transmitir nestas mais de duas décadas. Pokémon já teve personagens irritantes, chatos e vazios, mas Goh é o primeiro anti-Pokémon convicto, sem um arco que o redima. 

3 comentários:

  1. Imaginava que isto ia pegar com o personagem só de ver os primeiros episódios... É realmente irritante. Esta questão com a acumulação até me impedia de jogar o jogo direito quando era mais novo, porque eu só capturava os pokémons que gostava (o que é exatamente um jeito de dificultar sua vida jogando kk). Agora, voltando a jogar (comecei o LeafGreen essa semana) e tendo uma abordagem mais "jogo", tentando seguir com os objetivos de capturar um de cada e completar a dex, o negócio fez muito mais sentido (tipo, na hora de jogar mesmo)... Acredito que o jogo funciona assim, pra pegar todos mesmo, como vários RPGs japoneses dos anos 90 (vi uma comparação da fórmula de Pokémon com Shin Megami Tensei e Persona... achei que fez sentido), mas, pra equilibrar, comecei a fazer uma threadzinha no twitter contando uma historinha com os pokémons que eu for pegando... Há uma diferença entre meios que faz um personagem como o Ash um protagonista muito improvável nos jogos, ao mesmo tempo que alguém como Goh (perfeito para os jogos) fique todo zoado no anime...

    Eu já desisti de ver o anime (tô jogando e pensando em ler o mangá), mas adorei ler o texto 💖 Suas análises são muito boas e sempre que tem alguma coisa que você escreve sobre que eu vi, eu venho conferir ^^

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olha, eu sempre capturei dois tipos de Pokémon: os que eu gosto, e as "cobaias" pra colocar itens e TMS (algo que Sun & Moon dispensa), nunca curti nem fiz isso de pegar um de cada, até pq jogando "limpo" pra emulador nem tem como, sem usar trocas e outras ferramentas que nunca tive. Nunca curti esse método.

      Mas leia o mangá sim, eu curto bastante algumas adaptações (Hoenn principalmente). E valeu pelo feedback!

      Excluir
  2. Eu capturo esses merda mermo, fdc esses pokemon tem que sofrera, criaram o universo com humanos porque quiseram, pokemon bom é pokemon sem vida social.

    ResponderExcluir