The Sandman - O Sonho vem da Fantasia; Crítica


“People think dreams aren't real just because they aren't made of matter, of particles. Dreams are real. But they are made of viewpoints, of images, of memories and puns and lost hopes.”

Talvez nenhuma cena de Sandman seja mais fundamental e significativa ao espírito da série do que o embate mental de Morpheus e Lúcifer. Tanto narrativa quanto metaforicamente, é um momento inesperado que surpreende qualquer um não familiarizado com o material original. A criatividade de gerar um confronto entre forças místicas tão poderosas é inteligente ao driblar a iminente frustração que veria de um combate físico entre ambos, já que jamais poderia rivalizar com qualquer expectativa de vê-los no um contra o outro. Porém, não apenas isso, em criar uma ideia nova e igualmente provocativa intelectualmente, não somente destinada ao entretenimento. Criatividade. No âmbito metafórico, entretanto, focando na ideologia e na filosofia trocada entre os personagens, é importante enaltecer não somente a imaginação de Gaiman, mas seu pensamento. 

Dentro da mitologia grega, Pandora foi criada "a pedido" de Zeus e enviada como um Cavalo de Tróia, como uma vingança contra a humanidade e a benevolência do titã Prometeu, usando de isca seu irmão Epimeteu. O imaginário popular já estabeleceu o conceito de A Caixa de Pandora, carregando um grande mal inevitável e incontornável, mas desconhecido. Sua versão mais aceita é justamente o de conter a esperança, seja descrito como estado mental ou sentimento. A esperança, sim, o combustível que nos mantém em frente mesmo no mais caótico cenário. Não deixa, porém, de ser uma maldição, que estende nosso sofrimento e tormento por eras, incapazes de desistir pela persistência ditada no mínimo vislumbre da esperança. Pouco seria tão humano, afinal, quanto ela. Em sua ausência, o que resta é a esmagadora desilusão, a morte do sonho. Cujo resultado está na própria série, no memorável episódio da lanchonete: caos e morte. 

A esperança que Morpheus usa para derrotar o próprio Lúcifer. É bonito como a resposta de Morpheus, aí mérito da série em comparação ao momento da HQ, é como o argumento é usado não somente de modo "competitivo", mas empático. Uma empatia adquirida pelo Rei dos Sonhos através do suplício que, afinal, vemos em tela, numa humanização fortificada pela prisão centenária e o diálogo com a Morte - aí partindo das descrições mais déspotas e frias que temos do personagem numa era anterior ao visto na temporada. 

Afinal, é esse um dos brilhos de Sandman, esta representação espiritual espelhada da humanidade numa figura tão próxima do onipotente, a partir disso criando uma discussão sobre a natureza humana devidamente desafiadora, charmosa e divertida, sempre com algo a dizer independente do teor da passagem presente. 


É curioso como, mesmo tendo sido escrito há quase 4 décadas, Sandman, como conteúdo, se encaixa tão bem no modo de consumo da Netflix e do jovem atual, já que por vias próprias, é uma história tão recheada de estímulos, tudo por diálogos e uma mitologia incansável de nos maravilhar, muito mais do que devidamente visual - especialmente na série. Após ter recusado uma adaptação da obra tantas vezes, por muitos sua magnum opus, Gaiman, sempre um passo à frente, parece ter permitido finalmente sua recriação justamente por considerar uma época fértil e igualmente atualizar algumas de suas ideias para refletir e contemplar a sociedade atual, ao mesmo tempo tão liberal, mas também reacionária e com um ódio conservador crescente a estas mudanças. Se na HQ já havia uma representatividade progressista especial, a série esbanja ainda mais nestes valores. 

Porém, como o mérito de uma história está nela própria e na sua forma, a genialidade não está meramente na intenção, mas é claro que na forma como todas essas ideias são incutidas implicitamente numa narrativa pop e rica em referências históricas e mitológicas, mas sem jamais cair na pura metalinguagem, como dando a própria personalidade a todos seus elementos. 

Se há defeitos no seriado Sandman, entretanto, é a própria incapacidade visual de acompanhar a engenharia intelectual de Gaiman. Não se exige o mesmo estilo gótico e pictórico-expressivo dos quadrinhos, mas se questiona o total desinteresse em replicar esta identidade para a tela, quando na contramão, o texto tanto busca a fidelidade. Se textualmente e em suas figuras, Sandman debate e oferece representatividade, o mal contemporâneo do realismo também esbarra na recriação de reinos e sonhos, que pouco diferem da própria...realidade. No paraíso do onírico, onde tudo seria possível, falta inventividade imagética para reforçar as distinções do sonhar e do mundo "desperto", que por si só apenas contribuiriam para a imersão da série e, consequentemente, expandir o alcance de suas mensagens e debates. Muito disto, é claro, está na delimitação dos arcos representados, como nas visões limitadas do Inferno e dos outros Perpétuos, cuja explicação e exposição é insuficiente e frustrante, infelizmente uma imposição pelo formato seriado da adaptação. Ganchos para o futuro. 

Assim como Doctor Who, entretanto, a força motriz da série está em seu próprio personagem central, embalando histórias criativas e que nos ganham pela identificação e carinho com a figura central, carregado de uma melancolia palpável de quem conduz os sonhos e devaneios de toda a humanidade. Como a esperança, talvez este o fardo de tão poderosa criatura, esta responsabilidade e acúmulo de pesar, assim como o dever de não interferir. Esta ideia é melhor trabalhada na figura da própria morte, que aos familiarizados aos quadrinhos, conhecem seu passado nefasto e moribundo, justamente por suas obrigações, até a reviravolta que assume na personalidade que vemos em tela, aí como mentora de Morpheus, passando por uma jornada similar, porém sem rejeitar seu charme de natureza emo. 

Em aula de storytelling, Neil Gaiman atualiza sua obra sem perder o esplendor da fantasia com a profundidade da filosofia ditados pelo marca-passo social contemporâneo. Ao estabelecer o sonho como real numa narrativa fantástica, tudo vira possível. Não existe vida sem sonho, e de certa forma, nem a morte. Tudo faz parte do amálgama da existência, só possível enquanto conseguimos sonhar. 

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