Crítica: A Vigilante do Amanhã: Ghost in The Shell (2017).
Criado por Masamune Shirow em 1989, o mangá Ghost In The Shell, que popularizou-se através da adaptação em anime realizada em 1995, é um conto cyberpunk sobre uma sociedade futurista onde pessoas se fundem cada vez mais a máquinas, processo chamado de aprimoramento. Entre estas pessoas esta Major, que teve seu cérebro embutido em um corpo robótico especializado para combate. Mas a fama da obra se disseminou e perdurou mundialmente não apenas por este conceito, pois já temos distopias do gênero no Ocidente, como Blade Runner e Matrix. Seu sucesso se deu justamente na mescla narrativa entre uma lúdica ação e as filosóficas questões debatidas no famigerado tema de homem x máquina, explorado com riqueza pela mente do mangaká.
Cronologicamente passados 28 anos, estamos em 2017, em plena Hollywood, para a versão do Tio Sam aos cinemas do universo orquestrado há tanto tempo. Se o processo de produção enfrentou tantas críticas de fãs sobre apropriação cultural, ao inserir uma americana modelo (Johansson) em um papel originalmente japonês, a preocupação central, penso, foi negligenciada pelas paranoias culturais atuais - ainda que com relevância, certamente. Blockbusters são tradicionalmente caracterizados como cinema arrasa-quarteirão, do povão, mais comprometidos à diversão do que reflexão. Mas reflexão é justamente o cerne de Ghost. Será que um filme orçado em $110 milhões conseguiria manter-se fiel à contemplatividade original sem entendiar um público não habituado?!
Foi esta a pergunta que sempre me atormentou durante os meses que separaram o anúncio do lançamento, mais do que a nacionalidade do elenco. A resposta, como o esperado, é mista.
Pois Vigilante do Amanhã, como traduzido aqui (o que soa melhor, convenhamos, a Fantasma na Concha), assume sua descendência, com referências pontuais que arrancarão sorrisos de quem reconhecer, um visual moderno e opressor, mas principalmente, as questões existenciais. Só que, tendo em vista a necessidade de ter o retorno para o enorme investimento, não economiza nas explosões. Gera, assim, um produto aproveitável, mas desequilibrado.
A larga quantia de dinheiro é obviamente necessária para dar vida ao mundo idealizado de Shirow - e cada centavo é visto em tela. Com grande trabalho de design de produção e dos profissionais de efeitos visuais, a localidade (não revelada, mas tratando-se provavelmente de uma Tóquio mais miscigenada) é um avanço visual até esperado para a capital japonesa de hoje em dia; abarrotada, colorida e hiper-tecnológica, o que cria uma paisagem capitalista avassaladora e asfixiante, como pede a essência do cyberpunk.
Tecnicamente, então, não parece haver defeitos em Ghost In The Shell. O mercado cinematográfico japonês não teria estrutura para suportar tamanha produção. É natural que seja o norte-americano a abraçá-lo. Mas é neste "megalomanismo" de obsessão monetária e desvalorização intelectual do público, em detrimento do minimalismo íntimo nipônico, que encontra-se o elo fraco e que os americanos não conseguiram traduzir do nihongo. Pois, como supracitado, se a ação é um elemento presente em Ghost In The Shell, considerá-lo o componente principal é um equívoco tremendo.
Se foi essa a interpretação dos roteiristas Jamie Moss e William Wheeler, não sabemos. Mas é fácil inferir que no transporte entre uma mídia e outra, na ânsia de tornar tudo saturado e palpável ao espectador, erroneamente subestimado pelos estúdios, a dupla, juntamente ao diretor Rupert Sanders, não encontrou balanço sobre como inserir o tema da consciência existencial em meio a ação.
Rupert, cineasta encomendado, faz sua parte em não chamar demasia atenção. Mas se contém excessivamente É um trabalho competente na abordagem, mas burocrático. Deslumbrado com o que grava, faz o básico ao filmar seu elenco em tantos quadros que serão posteriormente complementados com efeitos, porém sem qualquer esmero autoral para ampliar a sensação de vazio e solidão de Major conforme está indaga-se mais sobre seu passado, ou ao menos utilizar inteligentemente os cenários. Sua mão é linear, um desperdício no contexto, mas que não pode ser chamado de ruim.
Sorte dele que os atores conseguem suprimir e transmitir as emoções pouco reforçadas pelo cineasta. Os personagens dignamento construídos são poucos, sendo a maioria uma mera execução de estereótipos, como o soldado brucutu Batou (Pilou Asbæk) ou o magnata inescrupuloso, Cutter (Peter Ferdinando). São duas mulheres, justamente as melhor envolvidas na discussão acerca da humanidade de Major, que se sobressaem. A brilhante Juliette Binoche faz muito com pouco ao conferir paixão e emoção no seu olhar de mãe para sua principal criação, enquanto a criação em si, Major (a subestimada Johansson) é sábia e meticulosa na performance da heroína. Inicialmente, quando parece abdicar de sua humanidade e age como uma arma obediente, mostra-se álgida e impassiva. Conforme a trama avança e ela começa a questionar sua história e pensamentos, as expressões brotam no rosto da atriz com precisão.
O rendimento de Scarlett é primordial não apenas pelo seu papel de destaque na película, mas justamente para oferecer veracidade em meio à superficialidade com que o texto acrescenta, a conta gotas, a temática contemplativa. Assim, somos levados e nos angustiar e questionar junto a ela. Benefício maior aos que desconhecem o original.
E os que nunca experimentaram versões anteriores da trama, é claro, serão os mais satisfeitos com este live-action. É uma execução final compreensível. Um grande retorno deve ser proporcionado para dar lucro e uma possível continuação. Também, mesmo que seja uma adaptação, concessões criativas são bem-vindas e até necessárias para não transformar tudo em algo previsível e inócuo, apenas uma cópia. Mas o que foi visto não pode ser desvisto, e os fieis ao mangá ou à animação, se com a memória em dia, sabem como o potencial total da obra não foi plenamente atingido, o que é lamentável, pois ele foi revolucionário à época e se mantém atualizado em nossos tempos.
Vigilante do Amanhã é, sim, um bom exercício. Mas que, não fossem as frequentes interrupções de cada traço de complexidade maior por jogos de luzes, balas ou canhões, poderia ser ótimo, seja interpretado por americanos, japoneses ou angolanos.
O que vale, afinal, é a história.
Nota: 7.
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