Usurpando Deus em Kizumonogatari
Obs: este texto é de propriedade intelectual oriunda especificamente da trilogia de filmes Kizumonogatari, sem qualquer influência das outras obras da franquia.
O que você abstrai do termo "egoísmo" e suas variações? O atribui significação pejorativa, provavelmente. Uma pessoa autocentrada, monomaníaca nela mesma, que negligencia o todo para beneficiar o indivíduo.
É a concepção contemporânea. Tudo isto, entretanto, poderia ser a definição do egocêntrico, enquanto o egoísta, sufixo ista, "pertencer" é característica imanente na formação do caráter do mais relés carpinteiro ao mais brilhante pensador. O ato de estabelecer princípios e lutar por estes faz de alguém um egoísta, de certa forma, e nisto se enquadram figuras antagônicas, que divergem em metodologia, é claro, mas que dependendo do espectro adotado, tornam-se influenciadores para o avanço da humanidade: aí temos, se concordaste, nomes como Marx, Aristóteles, Sócrates, Simone de Beauvoir, e também Hitler, Jim Jones, Pol Pot, Kim Il-sung e Bin Laden, por exemplo.
A segunda lista é o que podemos diferir como egocêntricos. Nietzsche tinha o conceito do Super-Homem, o além-homem, a forma final do niilismo e que seria a existência ideal, nível mais avançado do ser. Porém, não é um feito alcançável utopicamente a todos. O filósofo sempre reforçou sua crença na hierarquia da sociedade, em que esta seria doente e um indivíduo deveria focar em si mesmo para enlevar-se sem apodrecer na mediocridade comum.
Suas palavras, em Assim Falava Zaratustra:
"O homem é para o Super-Homem o que o animal é para o homem, uma dolorosa vergonha, uma gargalhada, um sarcasmo e nada mais."
Ver-se como o Superman, então, seria o extremo negativo do egoísmo, o egocentrismo, tendo a imagem de sua persona como superior e digna de reverência. Com a morte de Deus, o homem é responsável pelo próprio destino; há os que escolhem adotar o absurdo da vida para levá-la adiante, como dizia Camus, enfrentar o desespero da solidão e falta de propósito no universo (Existencialismo) ou, pelos termos de Nietzsche, transitar pelos estágios do Niilismo.
Supõe-se que não exista Deus (o Cristão) no mundo da série Monogatari. Se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, o que diabos seriam os vampiros? O mundo encontra-se abandonado da intervenção divina. Neste contexto, surge Koyomi Araragi, o jovem pós-moderno, solipsista maior, representante cultural do arquétipo japonês para o famigerado mal social que cria nomeações e situações tão específicas e bizarras naquele país, como os Hikikomoris e a moral transviada de sua mídia, de adoração e normalização à sexualização de menores - se é que a sexualização exagerada do corpo feminino já não representa um viés de ética.
Personagens como Araragi, não à toa, por retratarem a visão bestial e cotidiana do Otaku médio e consumidor primordial deste tipo de conteúdo, estão em voga (lembro-me imediatamente de Hachiman Hikigaya, Oregairu). O jovem refuta sua imperícia social, nega a realidade e se aliena dentro da própria ignorância através da visão de que assim está bom, assim está melhor. Não é que ele não desejar amigos e uma namorada; ele não os quer, não os precisa, pois é superior a estes, que lhe reduziriam status (não seria surpreendente se, à noite, seu passatempo favorito fosse logar no 4chan com um avatar de Loli vestida de lingeries).
Sem Deus, ele vive o Niilismo passivo, apenas leva a existência sem propósito, sem objetivos (quando perguntado sobre a faculdade, sua resposta é nem saber se irá se formar no médio), no desespero de não saber quem é, negando a sua própria existência e assumindo uma armadura que, como se utilizasse um óculos VR, bloqueia seu contato com o exterior e o brinda com uma visão fantasiosa do que realmente está à frente. Até por isto, é natural que a primeira pessoa a dividir a tela consigo seja uma garota, cognitivamente brilhante, usando óculos, com peitos do tamanho de uma melancia balançando como geleia, cuja saia é levantada por um conveniente vendaval, exibindo sua calcinha de renda, branca, com adornos eróticos. A despeito do contraste de personalidades e sem motivo aparente, ela se mostra incrivelmente interessada e subserviente a ele.
"Há boatos de uma vampira por aí, de cabelo branco, irresistivelmente bela", diz a garota. A simples menção, mesmo que você desconheça a continuidade da franquia, pelas leis do entretenimento, deixa claro que, e isto é irrevogável, o destino de Araragi reserva a ele um encontro com esta entidade sobrenatural.
Novamente, entretanto, por maior que seja o fator de periculosidade que esta lhe representaria, o que ocorre é simplesmente fantástico, totalmente apropriado para que se beneficie da situação. Decepada e desprovida de membros, a vampira está estatelada ao chão, incapaz de oferecer ameaça, e sim uma oferta que lhe faria dever a vida ao rapaz; repito, um estudante sem aspiração nenhuma que não seja se masturbar até o apocalipse - ele só encontrou a criatura voltando de sua visita a uma livraria, onde comprou uma revista para estes fins.
Passado o medo inicial, Araragi cede ao pedido e dispõe de seu incólume pescoço às presas sanguinolentas. A partir daí, Deus ressurge, pois a vampira, chamada de (respirem), Kiss-Shot Acerola-Orion Heart-Under-Blade (ou Kiss-Shot), se torna a criadora do renascido Araragi, que antes de morrer diz sacrificar sua insignificante vida para reviver como alguém melhor, o que agora é permitido, ainda que no mesmo corpo.
A tomada do Ego demora a chegar em Araragi. O que perdura inicialmente neste receptáculo reformado, que adquire invejáveis músculos para suportar a força recém adquirida, é a insegurança e o pavor de dizer "Sim" para superar a conformação com o nada, seguindo novamente os ensinamentos de Nietzsche, ainda incrédulo na condição presente, no "milagre" que lhe foi ofertado graças ao seu desejo (ou perversão, sem julgamentos).
A experiência que explana ao protagonista que, agora, ele não é mais um simples humano, por mais que o condicionamento social o faça exprimir a ânsia de, após realizar sua provação, voltar a ser um Homo sapiens prosaico. Ele consegue derrotar, com certa facilidade até, os ditos especialistas em exterminar vampiros. A oposição ao seu ápice como individuo se mostra patética. Como, então, provar o próprio valor e seu dignificar ao pináculo da autoconsciência? Derrubando Deus e erigindo à alcunha de herói, o salvador do povo.
Os resquícios da humanidade, do niilismo negativo e passivo, no entanto, ainda impedem a libertação total de Araragi. A satisfação que lhe parece suficiente está em mãos, com a garota dos sonhos disposta a perder a virgindade sem objeção, num depósito antigo, atraída pelo espelho que vê no garoto, disposto, agora que descobriu o prazer, a tudo para se agraciar, tendo uma noção profunda disto, sem mais forças - ou vontade - para negar.
A batalha final, com contornos épicos e nobres, entre criatura e criador, começa sob o pretexto da salvação à humanidade, do bem contra o mal, apenas mais uma faxada do labirinto da psique para que Araragi, agora mais do que nunca, atinja o gozo por si mesmo, orgulhoso de ter a imagem refletida de herói, para, novamente concordando com Nietzsche, chegar à conclusão de que uma pessoa ama os próprios desejos e não aquilo que é desejado.
Assim, a criatura não mata Deus, mas a substitui, e ainda a torna dependente e imponente, num parasitismo disfarçado de protocooperação. Deus está domado, dominado e controlado pelo homem.
A discussão realmente relevante é: como vai agir quem está em seu lugar? De modo egoísta e que beneficie outros, ou tomado pelo egocentrismo?
Resposta que está, naturalmente, na sequência da cronologia Monogatari.
Hã...Não sei como expressar o quanto eu gostei desse texto.
ResponderExcluir;)
ExcluirHã...Não sei como expressar o quanto eu gostei desse texto.
ResponderExcluirEita foi repetido !
ResponderExcluirSimplesmente espetacular! Eu, pessoalmente, adoro essas abordagem mais meticulosas em relação ao que uma obra fictícia tenta passar de relevante, não se detendo apenas a uma perspectiva unicamente técnica. Conheci o blog agora, e devo dizer que foi um ótimo primeiro contato (melhor ainda por tratar de Monogatari Series, uma das minhas obras favoritas).
ResponderExcluirAh, você poderia, por favor, me explicar o que seria o Solipsismo? Foi um conceito citado no texto que não compreendi direito, mesmo pesquisando.
Olá, Sombra! No texto, solipsismo se refere a alguém com estilo de vida solitário.
ExcluirTexto interessante. Pensei até em ver depois dessa, mas fui pesquisar e vi que é uma franquia baseada em livros contínuos, mas cada livro adaptam de uma forma diferente. Não sei pq japonês ama criar um caos adaptado rs Dá pra ver isso aí de boa sem ver os outros anteriores?
ResponderExcluirSim, porque é o início da história cronológica.
Excluir