Crítica - Blade Runner 2049 (2017).
O próprio Scott, aliás, deu motivo para desacreditarmos em seu projeto de reviver a tragédia dos replicantes, após naufragar nas pretensões de explorar a origem do que foi seu Oitavo Passageiro. Por mais tentador que seja revisitar novamente um universo precioso, pode ser que dessa vez, ela não tenha tanto a oferecer e desmistifique o encantamento anterior.
Felizmente, falhar não é algo que consta no vocabulário de Denis Villeneuve, escolhido a dedo para a continuação de seu original, diretor de gabarito e que permitiu uma tutela mais distante pelo mestre Scott, que aqui se conforma ao assumir a produção executiva.
O homem que não cansa de nos surpreender com sua evolução monstruosa por trás das câmeras, toma as rédeas e nos apresenta aos Estados Unidos distópicos exatos 30 anos após a história que conhecemos, 2049, sob o protagonismo de K (Ryan Gosling, em nome que alude a Philip K. Dick, escritor do livro que inspirou o filme de 82), um Caçador de Androides que se depara a um complexo caso que o levará a questionar sua existência.
Termos genéricos para uma plot que imediatamente lembra a vivida por Ford décadas atrás, mas que serve para preservar a experiência de quem for ao cinema (dica: vá), pois mesmo que a trama não seja intrincada com se espera de uma obra com quase 3 horas de duração, o mesmo se aplicava ao primário, e assim como fora consigo, é o modo de desenvolvimento que expande a simplicidade da trajetória interna, ainda que esta seja, vale dizer, mais ampla e influente que a de Deckard.
Se os mais receosos temiam o que outra visão poderia fazer com o esboço de Ridley, Villeneuve contextualiza e afasta as dúvidas logo no take inicial, onde afaga o ego de seu mentor e extrai o sorriso de fãs mais atentos, ao mimetizar o olho que reflete o universo, mas também serve como característica diferencial entre cada ser (assistir Origins) e, não em vão, replicantes e humanos.
Villeneuve, que disse ter em Blade Runner um de seus favoritos, mostra não ser um homem de palavras vazias, pois sua direção é como o sonho de alguém que bota as mãos em um brinquedo de fervoroso desejo, mas com a consciência e inteligência de não se deslumbrar com o objeto, e sim dar um significado próprio a este com a experiência adquirida após anos de observação.
As referências pontuais estão presentes em mínimos detalhes, hora simplesmente como signos temporais (cenas idênticas entre os filmes), mas principalmente, para reafirmar a equivalência dos universos, apesar do tempo transcorrido, e restabelecer o sentido narrativo, como a prostituta Mariette (Mackenzie Davies), que assimila-se a uma cosplay da Pris de Daryl Hannah, símbolo para a crescente deterioração da terra, a outros momentos mais minimalistas e emocionais, como a luz que clareia o rosto de Deckard quando este vê Rachael (Sean Young), para logo após ser novamente sobreposto em sombras, tendo na androide, antes e ainda hoje, uma fagulha de esperança.
As sombras compõem outro elemento essencial na realidade distópica, já estabelecida no neo-noir filmado por Scott e Jordan Cronenweth, seu diretor de fotografia, e devidamente acompanhados agora por Villeneuve e o genial Roger Deakins, que sabe captar perfeitamente o jogo de luz e sombras de acordo com o momento; a personalidade e reação dos indivíduos, mas também usufruir do avanço tecnológico para situar melhor a grandiosidade imunda das metrópoles americanas em uma escala bem adequada aos establishing shots aéreos tão tradicionais em sua filmografia.
O efeito reverso está no menor grau de sordidez das ruas, o que acaba sendo uma perda adquirida pela melhora das câmeras, sem a granulação cinzenta de outrora. O que é compensado pela maestria com que o cineasta trabalha com a introspecção contemplativa da filmagem, estilo que combina bem com as discussões existenciais que servem como norte para o andar da película. Mesmo que Blade Runner seja um trabalho notoriamente reflexivo, a pegada de Scott nunca foi esta, enquanto que Villeneuve sempre traz elementos assim para seus trabalhos, tanto em pequenas escalas - Enemy -, quanto blockbusters - Arrival. Nisto, o uso do supracitado chiaroscuro serve como coadjuvante íntimo nas intenções de retratar a melancolia e solidão dos personagens, perdidos em meio aos enormes prédios, ou silhuetas indizíveis em meio ao caos de uma mobília dispersa para camuflar o vazio de uma vida estagnada e sem esperança. A confiança com que a dupla orquestra o projeto, inclusive, disfarça a deficiência de Gosling em ensimesmar seus sentimentos, o que inicialmente se mostra uma jogada acertada por conta de sua natureza, mas que não encontra progressão de acordo com a evolução pessoal de K.
Menos pessimista que seu primeiro capítulo, entretanto, Deakins não deprime com escuridão sem oferecer a catarse do contraponto, como uma lenta e serena cena onde vemos Gosling se deitar, satisfeito, rodeado por neve. É um esforço calculado, mas também sensitivo. De quem sabe e gosta do que faz.
O tempo dirá, com precisão, o lugar de 2049 na história do cinema. O que não precisamos esperar, no entanto, é para atestar a tremenda felicidade de presenciar uma fita de tamanha qualidade nos cinemas, principalmente quem não estava lá em 82. Ainda não sabemos se Androides sonham com ovelhas elétricas, mas eles, com certeza, sonham.
Nota 9.
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