Como Treinar o Seu Dragão 3 (2019) - Crítica


"O único problema são as pragas. Sabe, a maioria dos lugares costuma ter ratos, mosquitos, mas nós temos dragões."

É assim que, em 2010, se iniciava o primeiro Como Treinar o Seu Dragão, adaptação livre da obra literária de Cressida Cowell, capítulo inicial da jornada de Banguela, a mais temível destas pragas, e Soluço, o franzino Viking, filho do líder da aldeia, cuja expectativa reside em fazer jus a seu pai e liderar os corpulentos guerreiros nas ferozes batalhas contra as criaturas cuspidoras de fogo.

Muito mudou nestes nove anos que separam as três narrativas, e agora, no canto do cisne da trilogia, o cenário é amplamente diferente. Os dragões, outrora inimigos, tornaram-se uma espécie de pets para os Vikings, mas sem deixar de possuir sua própria liberdade e mordomia, jamais resvalando no equívoco de assimilá-los a gado. A relação é de respeito mútuo e amizade, não submissão e controle pela força.

Pelo menos é assim que Soluço idealizou. O mundo, porém, é amplo, as pessoas distintas, e sua pequena ideia de paraíso é, mais uma vez, violada quando surge um novo tirano com pensamento obsoleto e conservador para quebrar a harmonia atingida entre as espécies. Se Drago Sanguebravo foi uma espécie de Ronan (Lee Pace no primeiro Guardiões da Galáxia) deste universo, surge agora Grimmel (Thanos da vez), o antagonista maximizado por intolerância, ódio e uma cegueira absoluta em compreender o comportamento pacifista visto em Berk. Se para Soluço, Astrid, Bocão e seus amigos, os dragões são como cães e gatos tratados de modo igualitário e generoso, a Grimmel eles não passam da visão bíblica inferiorizadora, meros animais, como seres impuros e desalmados, nascidos para o abate, considerados troféus de orgulho - o exterminador de Fúrias da Noite, se autodenomina, e aí há a obsessão que o liga mais diretamente ao protagonista do que como um opressor generalista. Ele quer Banguela.


Apesar dos conflitos corriqueiros, a temática central das películas sempre orbitou o entendimento e convivência entre duas espécies tão distintas e que enfrentaram gerações em clima bélico. Primeiramente, Soluço, em sua própria jornada do herói, quebra o estereótipo do Viking brutamonte e assume um papel estratégico e intelectual; na segunda aventura, lhe é imposta uma liderança inesperada, para a qual ainda não se encontrava pronto. Aqui, já neste papel, ele enfrenta as dúvidas, mais da própria natureza insegura que dos outros. Há questões que se repetem: nos três longas, nosso protagonista enfrenta as incertezas de seu potencial e deve defender seus princípios acerca dos dragões. Isto, inclusive, se mantém nas séries da franquia, exibidas no Cartoon Network e Netflix.

Seria uma muleta narrativa repetitiva na vasta maioria dos casos, mas nos roteiros do também diretor Dean DeBlois, o que se extrai não é o esvaziamento criativo, e sim uma sensibilidade terna e humana do que é a existência; um eterno amadurecimento, onde obstáculos não são facilmente sobrepostos em definitivo, mas em constante provação. É a determinação estoica de Soluço em aprimorar não somente seus valores e habilidades, como a perspectiva e vida de todo seu povoado, que o fazem o líder ideal, por mais improvável que seja, com seu corpanzil frágil e barba rasa.

Porém, o brilhantismo desta saga está em como DeBlois, assim como seu protagonista, não se resigna e está sempre avançando. A Dreamworks não merece esta trilogia, não com o legado construído até aqui, pois são longas muito à frente do estúdio. As mensagens e assuntos abordados nestas quase seis horas em que acompanhamos sua historia são universais, abrangentes e acessíveis, mesmo que por vezes arranhadas timidamente (a sexualidade de Bocão, sempre sugerida com comicidade). Acima de tudo, o foco está na camaradagem e companheirismo como ferramentas indispensáveis para o crescimento pessoal e de uma nação, e é justamente o coletivismo cognitivo que difere a sociedade evoluída de Berk de figuras individualistas e egoístas como Draco e Grimmel, soberanos da própria arrogância, reis inatingíveis e solitários somente da própria ignorância arcaica, se isolando no que os leva, previsivelmente, à autodestruição.


Nesta contextualização, o arco de Soluço com Astrid não é meramente um fanservice romântico, e sim uma aula de crescimento mútuo, confiança e parceria. E a Fúria da Luz exibida tão ostentosamente no material de divulgação serve a Banguela com o mesmo propósito. E tampouco elas servem somente de estepe ao masculino, com a própria estrada a trafegar e personalidade a exibir.

Como Treinar Seu o Seu Dragão, do primeiro ao último suspiro, carrega o espírito realista e caloroso, porém não ilusório, da Pixar. São mundos onde a perda, a dor e a maldade existem, mas sempre como forma de aprendizagem e reforço na prevalência de bondade - que nunca, nunca é atingida com facilidade. Até por isto, o final da saga soa agridoce e melancólico, porém palpável. Os dragões não deixam de representar o estado primitivo e puro de nós mesmos. Só que nem todos estão preparados para encará-los. Ou de enfrentar a si mesmo.

Esta é a abordagem final. Quando derrubou o Fúria da Noite, Soluço teve uma escolha. A mesma que Grimmel revelou ter possuído. Eles tiveram uma fera desacordada para fazerem o que quisessem. A escolha mais previsível e aceitável naquele ambiente é a que tomou Grimmel, e ali, abateu não somente um dragão, mas a ele mesmo.

A pergunta é: você é um Soluço, ou um Grimmel?

Nota 9.

2 comentários:

  1. Xiii... Quero assistir, mas esqueci completamente da trama dos dois primeiros (e dos livros. Li todos quando tinha meus 12 anonhos)
    Tem algum problema?

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    1. Você vai se envolver melhor lembrando das tramas dos anteriores.

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