Tempo e Escolhas em A Mula - Crítica


No auge de seus 88 anos, Clint Eastwood pode se orgulhar de sua passagem em terra. Vencedor de quatro Oscars, 72 créditos como ator, 41 como diretor, um dos nomes e rostos mais icônicos e marcantes da história do cinema. Seu legado é garantido. Clint não tem mais nada a provar a ninguém. Ou tem?

Teoricamente, A Mula é inspirado no artigo "The Sinaloa Cartel's 90-Year Old Drug Mule", publicado em 2014 no New York Times Magazine. Porém, Clint usa o roteiro de Nick Schenk (o mesmo de Gran Torino) para dizer muito mais do que contar essa insólita história, o transformando numa discussão sobre a sociedade americana e sua própria carreira, não somente como diretor e ator, mas como marido e pai.

O cineasta surge em cena como Earl Stone, um veterano da Guerra da Coreia, bem-vestido, sorridente e simpático, distribuindo em um evento flores colhidas de sua própria produção, sendo um floricultor bem-sucedido e popular no ramo, adorado por todos. Mas é claro que nem tudo é assim.

A cena é contrabalanceada por sua filha, aos prantos, quando recebe a realidade de sua mãe, de que o pai não virá ao seu casamento, assim como se ausentou de inúmeros aniversários, formaturas e demais festividades familiares. Não é mera negligência ou esquecimento, e sim sua própria escolha, já que num bar, ele paga uma rodada a todos, inclusive aos convidados de um outro mateimonio, em que Earl deposita um olhar culpado. É o suficiente para entendermos o motivo de Clint voltar a atuar após seis anos.

Cortando para mais de uma década depois, vemos a consequência óbvia de suas prioridades: Earl está sozinho, afastado da família e nem mesmo o trabalho parece ter compensado, já que perde a própria casa.


O ritual de redenção parece a estrada natural para o personagem, e apesar de não ser uma escolha completamente dissociada da ideia original, Clint não constrói a figura de Earl sob o olhar de pena, e sim deposita traços de sua própria história ao compor o velho charmoso. Por exemplo, sua filha na vida real, Alison Eastwood, interpreta o mesmo papel como a amargurada herdeira de Earl, se recusando a falar com este pelo descaso com qual a tratou na infância. Earl, no entanto, vê uma chance de recuperar o tempo perdido quando descobre a fortuna que faz sendo Mula de traficantes locais. Inicialmente ignorante a seu papel, contente somente em dirigir às cegas aonde é enviado, a curiosidade pelas grandes somas de pagamento recebidas o coloca na situação de cúmplice, e então Earl faz sua derradeira escolha, buscando compensar décadas de opções equivocadas que lhe custaram tudo que agora faz falta.

Aparentemente indiferente ao que transporta passado o choque inicial, Earl dirige sorridente e sereno, sempre em companhia do rádio. E sosinho. Apesar da idade avançada, Earl parece ter uma vida plena: nas quase duas horas de duração, participa de dois ménages, bebe, dança. São nos raros momentos de silêncio e diálogos íntimos que o peso e arrependimento das escolhas que fez se revelam, como quando adverte ao detetive interpretado por um Bradley Cooper no automático que não cometa o mesmo erro que ele; de preterir a família por trabalho.

Uma mensagem, ainda que cafona, calcada nas marcas da pele enrugada e o olhar por vezes perdido de Earl, que abraça o caos justamente para fugir de si mesmo. Mas é claro que esta rotina não é estável, e ele logo percebe, afinal, que poderia comprar tudo, menos tempo, e assim aceita o próprio destino e a punição que lhe acha cabível por anos do sofrimento que gerou a outros, seja como Earl, o personagem, ou Clint Eastwood, lenda da sétima arte, mas de conturbada vida íntima.

A Mula flerta com o clichê e o piegas ao formular frases que ressaltam o valor familiar acima de tudo no final de nossas jornadas, mas indo na contramão do básico, não é um pedido de desculpas do diretor nem um retrato indulgente de Earl, que afinal, movimentou drogas que certamente desestabilizaram outros tantos lares, mas um alerta, um aviso e uma dica de quem já experimentou tanto em vida.

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