Never Rarely Sometimes Always; O Peso no Silêncio - Crítica


Mais de uma hora em tela se passa até entendermos a razão para o curioso título do filme, quatro palavras misteriosas e até então desconexas da realidade exibida. Quando chega o momento, não somente se torna brilhante a justificativa, como a poesia macabra por trás dele. Sidney Flanigam vive Autumn, outro termo que coloca este longa de Eliza Hittman num destes nichos plenamente ensaiados para Sundance, um Indie em toda sua estrutura, e como tal, compromissado e livre para abordar temas com certo pioneirismo, sem amarras de grandes estúdios e orçamentos. Certamente o festival é a maior dívida que temos com Robert Redfort, ainda acima de sua invejável filmografia. A trama acompanha Autumn e sua prima, Skylar (Talia Ryder), numa viagem do interior da Pensilvânia até a metrópole de Nova Iorque, atrás de um aborto para a garota que leva o nome da estação de equinócio. 

Como um homem, é complicado, arriscado e talvez arrogante escrever sobre Never Rarely... Por mais que me posicione a favor, sinta empatia e consiga buscar dados que confirmem, já que o humanismo em voga não basta, como o aborto deve ser legalizado, eu não sei como é ser uma mulher. Apesar de se passar nos Estados Unidos, transportando para nossa realidade, podemos trazer dados aterradores: em 2018, foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil, o que representa 180 casos diariamente, grande parte menores de idade, e por conhecidos. E estas são somente estatísticas cruas do mais radical argumento para a legalização do aborto, desconsiderando outras realidades sociais, como o caso de negras e pobres serem ampla maioria das vítimas não somente de estupros, mas de morte ao procurar serviços clandestinos para realizarem o procedimento abortivo. 


Never Rarely, entretanto, é um filme verbalmente mudo na discussão do tema.
 Não há debates contra ou a favor, nenhum dos dados que eu mencionei. Não há julgamento, e sim um acompanhamento quase passivo da câmera na jornada das duas jovens, em um tom semi-documental. Autumn possui somente 17 anos, e até a supracitada cena que intitula o longa, não revela nada de como chegou ali, deixando aberto a suposições, achismos, que invariavelmente acabam saindo pela ideologia do espectador. Fato é que o mundo ao seu redor é infértil e frio, com cores apagadas e baixa iluminação. Quieta e isolada, suas poucas palavras costumam ser num tom agressivo de quem não deseja ser perturbada, tampouco objeto de preocupação ou simpatia, e são sempre seguidas de um movimento de afastamento, novamente buscando a solidão. Há algo errado, ainda antes da confirmação da gravidez, que causa em sua expressão pouca ou nenhuma mudança, e sim uma constatação frívola de uma desgraça aparente ou natural. Ela não busca apoio, e isso diz menos dela que de uma sociedade patriarcal que recrimina fortemente o aborto e condena as mulheres a um papel materno imposto, a despeito de suas escolhas e causas da situação. A sociedade do "só engravida quem quer", que se diz em defesa da vida, quando na verdade as condenam. Da levianidade e hipocrisia de homens que saem às ruas contra este ato dito de "assassínio", mas tanto contribuem para que 31% das mães brasileiras sejam solteiras. 

Mesmo entre seus pares, Autumn se muta, e a sororidade silente vem de sua prima, Skylar, novamente sem debate, e sim uma concordância imediata, em que só há uma resposta. Nisto, acabamos por ser envolvidos no silêncio de sua relação, numa falta de diálogo e desabafo que somente nos leva como cúmplices nesta jornada cinza, escura e entorpecida em melancolia, de modo que quando o rombo impiedoso chega, ele acaba por explicar e tornar compreensível o silêncio da protagonista, já que expressar leva a lembrar, e isto a dor; à angústia de se ver impotente numa situação em que as verdades se revelam cruas e abrem feridas. Em que a vítima é amordaçada pela realidade de ser representada como agressora, em que não há respaldo sobre sua escolha nem seu corpo. Antes de entrar na clínica abortiva, as duas observam uma manifestação cristã que condena o ato, um lembrete dogmático do ato cuja construção social, aprendemos desde novos, é censurável e repreensível. Dentro do local, Autumn é posta sob um interrogatório ainda mais invasivo, que busca desmembrar seu passado e histórico até ali, cujas respostas optativas são quatro: Nunca, raramente, às vezes e sempre. Never Rarely Sometimes Always. 

Circulando por estações de metrô e ônibus, a câmera reforça a pessoalidade da obra em escolhas que raramente desfocam da expressão fechada das personagens, o que também evidencia como elas, e principalmente Autumn, se sentem enclausuradas, perseguidas e sob julgamento. O olhar alheio sempre as atinge, e é como se o mundo soubesse do porquê estão ali. Elas também se revezam carregando a própria bagagem, incluindo uma enorme e pesada mala, por onde vão, uma vasão do enorme fardo que carregam. Em microcosmo, um simbolismo da difícil e dolorosa cirurgia de Autumn. Mas mais do que isso, da superexposição e periculosidade de ser uma mulher em uma sociedade forjada em princípios patriarcais. Os olhares sedentos e pervertidos, os contatos físicos provocativos e desrespeitosos. É um eterno tormento, uma desconfiança aumentada pela confusão desproporcional e hercúlea que se sentem, perdidas pela primeira vez na imensidão da cidade da Estátua da Liberdade. 


Este peso esmagador, simbolicamente, só alivia quando o pior é deixado para trás, quando finalmente a luz bate ao rosto e elas se permitem um sorriso. Não é o fim de uma provação que pode, nas Autumns e Skylars do mundo real, recomeçar na próxima parada, mas ao menos a certeza de uma comunidade de consciência e apoio crescentes, por mais embrionários que sejam. 

Talvez, a nossa melhor reação seja nenhuma. Seja respeitar e observar quem realmente tem de enfrentar isto. Se o privilégio nos foi dado de escapar desta realidade, o mínimo a se fazer é não dificultar ainda mais quem é constantemente ameaçada pela probabilidade de encarar tal confronto. 

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