Harry Potter e a Ordem da Fênix (2007) - Crítica
A crítica a seguir faz parte do projeto dedicado a escrever sobre todos os filmes da série como se vistos à época do lançamento, pela primeira vez.
Para este projeto, eu tenho revisto os filmes da saga através de edições Blu-ray em Steelbook. Como são embalagens difíceis de se encontrar no momento, disponíveis, basicamente, somente através de sellers, Cálice de Fogo, o quarto capítulo da franquia e próximo que deveria receber a revisita, ficará para depois. Já realizei a compra, mas a entrega se encontra atrasada devido ao Coronavírus. Portanto a escolha de seguir com a Ordem. A sequência será retomada assim que possível. É isso.
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Um dos grandes méritos de Harry Potter é como, a cada capítulo, seja no meio literário ou cinematográfico, a mitologia se expande, tornando aquele universo mais rico, complexo, fascinante, encantador, mas também letal. Essa letalidade, aliás, que vem crescendo a cada novo longa, substituindo o tom pueril e ingênuo dos dois primeiros filmes, corresponde com o amadurecimento da própria franquia, espelhando isto não somente, o que seria óbvio, no crescimento dos personagens, mas também do público. Cada ser, localidade ou contextualidade mágica insere palpabilidade à criação de J.K., e ver a expressão audiovisual de sua fértil imaginação nos filmes é um dos grandes e inigualáveis poderes da sétima arte.
E é ingrata a tarefa da adaptação de Ordem da Fênix (702 páginas na versão nacional), pela primeira fez roteirizado por alguém que não Steve Kloves, alegando fadiga - assumiu Michael Goldenberg, cujo principal marco é Contato, também extraído de um livro. Nesta massa intimidante de páginas, J.K. Rowling desenvolve, com a destreza e fluidez habituais, a continuidade da história de Harry Potter, cujo desenrolar se encaminha, naturalmente, a um confronto final perante o crescimento das forças das Trevas. O clima é sombrio, como bem anteviu Cuáron, cuja herança estética em "Prisioneiro de Azkaban" dita o tom de melancolia e umbrosidade que vemos aqui. Mesmo com as durações generosas, é inevitável que se escapem detalhes, e aí residem as falhas mais previsíveis e prejudiciais à obra.
O problema, entretanto, não são as alterações, algo ritualístico, necessário ao se transpor uma mídia para outra. E sim a própria inclusão de demasiados elementos numa trama já inexplicavelmente reduzida (138 minutos) em relação aos seus antecessores, uma escolha que seria cabível caso fosse concluído que a história contasse com uma verborragia infértil no terreno do cinema, o que não acontece aqui. Desde o início, são os obstáculos que parecem franzir a tela do espectador. É notória a pressa em se evoluir a trama, com alguns recortes aceitáveis, como a pouca aparição dos Dursley, que só não foram expurgados, imagino, pela conveniência dramática e a já ausência no Cálice de Fogo; outras, entretanto, talvez sejam traiçoeiras aos milhões que vão ao cinema já tendo conferido o livro, mas que podem deixar muitas dúvidas e, senão isso, uma superficialidade danosa a quem desconhece o material original.
Ordem da Fênix, literariamente, reuniu mais críticas negativas que a franquia até então justamente por seu calhamaço não ser visto, por alguns, como essencialmente enriquecedores na história. No entanto, mais do que uma breve aventura ou um inimigo final, como num game, Ordem da Fênix investe pesado em engrandecer mais o Potterverse. O próprio título já representa uma instituição que, mais do que servir como aliados contra Voldemort, traz em sua bagagem histórias familiares que expandem o background de personagens queridos, além de conferir mais tempo a rostos amados. Numa ânsia de abranger a maior variedade possível de elementos criados por Rowling, filtrando ainda alguns que devem desagradar o leitor mais xiita, o roteiro de Goldenberg parece mais satisfeito em ressaltar como certas coisas existem do que focar e explorá-las devidamente. O período que passamos com grupos como a Ordem e a Armada de Dumbledore são aprazíveis e imaginativos, no entanto insuficientes. Já o romance de Harry e Cho é patético, e a atriz jamais recebe a chance de mostrar seu valor, servindo mais como oportunidade para esboçar a paixão secreta de Gina pelo herói, com a câmera frequentemente esperando uns segundos a mais para ressaltar um olhar hesitante e desejoso da jovem Weasley para com Harry. A questão central, mesmo, é o pouco tempo passados com eles, o que poderia ser resolvido em vinte minutos a mais, e mesmo com esse acréscimo, ainda não teríamos a duração de Câmara Secreta. É inexplicável e frustrante.
No entanto, se até aqui a crítica passa a impressão de descontentamento, é urgente que se faça compreender o contrário. Talvez, simplesmente assim, seja impossível fazer um filme ruim de um texto absurdamente cativante e precioso quanto o de Rowling. Claro, um bom time reforça e melhora o que já é bom, como vimos principalmente em Prisioneiro, mas mesmo mentes no automático ou tímidas demais para se destacar, conseguiriam tornar este um bom esforço. No comando do time, pela primeira vez dirigindo uma produção para a tela grande, está David Yates, cineasta novato que só havia filmado para a televisão até então. E ele se sai surpreendentemente bem para um trabalho de tal escala, no mínimo não nos fazendo ter aquela incômoda sensação de que outro diretor poderia fazer melhor a todo instante.
Yates é advindo de uma filmografia curta, mas madura, uma característica central que se escancara ainda mais em Ordem da Fênix, que entra, contundentemente, no mundo politico. Se Harry Potter sempre teve alegorias diversas de âmbito social, principalmente psicológicos, agora a saga expõe definitivamente uma das marcas mais célebres e nobres de obras fantásticas, que é o combate firme e declarado contra o autoritarismo. Algo já visto em Star Wars e Senhor dos Anéis, por exemplo, mas que nem por isso deixa de ser original, selo recebido pela forma como a discussão acontece.
Diferente do deslumbre de outrora, o perigo emana e invade nosso protagonista até mesmo em seus sonhos. E não bastasse o alarmante retorno de Voldemort, ainda é preciso encarar um ministério cético e conservador que, na figura de Cornélio Fudge, desdenha dessa veracidade, ávido em silenciar qualquer um que declare o contrário, como Harry e Dumbledore, os estandartes máximos do que ele considera uma revolta que visa sua posição política. A causa do medo de Fudge é o menos importante, e sim o que ela representa e influencia. Cego em seu medo, o Ministro mostra uma faceta completamente avessa à que vimos no Prisioneiro: caloroso e honesto. O olhar perdido e maníaco do ator Robert Hardy são o sintoma de um governo que abraça a ditadura e todos os alicerces desta, como a censura e a imposição pelo medo. Não é à toa que o nome do grupo criado para perseguir os rebeldes de Hogwarts seja "Brigada Inquisitorial".
O castelo deixa de ser um refúgio para se tornar, em certos aspectos, a prisão. Perseguido e desacreditado, a mensagem da união e amizade veem mais forte e menos didáticas do que nunca. O papel trilhado por Harry até aqui serve para que se torne um símbolo não somente pelo passado, mas pelo que ele construiu em sua trajetória, desta vez menos como uma questão de sorte de protagonista, e sim necessidade e comunhão de combate ao regime ditatorial de Dolores Umbridge, uma versão mais hedionda, mesquinha e demoníaca de Rita Skeeter. Inclusive, uma das melhores sacadas da fita veio justamente de uma ideia de Dan, que fora inspirar o comportamento e vestimentas do Harry-professor em Remo Lupin, certamente o mentor que mais tocou e ajudou o rapaz - novamente no Prisioneiro. Eu Já disse que amo esse filme??!!
Porém, mesmo sob as sombras de um mal encaminhado, Yates e o diretor de fotografia Slawomir Idziak extraem a beleza e a magia de Hogwarts e as relações ali criadas para não nos deixar esquecer o lugar incrível que é, bem como revitalizar e fortalecer seus valores. É um conceito estabelecido na série, verbalizado na citação de Dumbledore em Prisioneiro: "A felicidade pode ser encontrada mesmo nas horas mais difíceis, se você se lembrar de acender a luz". Um dos exemplos disto está na metáfora dos Testrálios, pégasos cadavéricos e enegrecidos que só podem ser vistos por quem já presenciou a morte, mas que apresentam um comportamento doce, solene e altruísta. Sua introdução é feita por outra nova e curiosa figurante deste mundo, a sonhadora Luna Lovegood (Evanna Lynch), que parece sempre significar mais do que de fato influencia na trama, mas sempre garante uma presença carismática e genuína em tela.
Tecnicamente, Yates se destaca ao fazer justamente o que eu disse anteriormente, que é melhorar o que já é incrível. No último ato, passado majoritariamente no intimidador e asfixiante Departamento de Mistérios, a cor de um azul-fátuo transmite a sensação fúnebre da morte, antevendo o que infelizmente chega, enquanto a câmera, durante o confronto com os Comensais, balança, nos deixando desorientados em confronto com o perigo.
Se o tempo não permite que Ordem da Fênix se torne um dos melhores da série, seu conteúdo e escolhas narrativas ainda são o suficiente para torná-lo digno de uma experiência memorável e recheada de sensações. O mundo bruxo de Rowling não é mais, somente, luz sobre trevas. Ele cresceu e ganhou camadas como a mente de seus protagonistas e público. Quem melhor expressa isso é justamente a maravilhosa frase de Sirius:
"Todos temos luz e trevas dentro de nós. O que importa é o lado o qual decidimos agir. Isso é o que realmente somos."
Menos mágico, mas não por isso menos maravilhoso e encantador. A função da Ordem é atingida com êxito, que é aproximar a magia da realidade, enaltecendo como, no final, as alegrias e belezas de um também estão no outro, e ditando o caminho certo a se combater. E, principalmente, a razão, aquela que Voldemort não tem e sua maior fraqueza. Ter alguém por quem lutar.
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