Tolkien; o Homem Por Trás da Lenda - Crítica


O gênero biográfico é, talvez, o mais irregular do cinema. Capaz de entregar obras-primas complexas e ricas como Amadeus, A Rede Social, O Aviador, Jesse James, O Homem Elefante, mas também trabalhos manjados, por vezes hagiográficos e constantemente rasos, como Judy, Bohemian Rhapsody, Jobs (o com Ashton Kutcher), J. Edgar. A lista é longa, mas a ideia é essa. Cabe muito ao realizador responsável, mas até os grandes, como Eastwood, cometem erros. No entanto, há a diferença entre esboçar a história de um músico, um guerreiro, e um escritor, cuja vida tende a ser mais pacata, sem tantas emoções e eventos grandiosos, quando cabe mais se apoiar na psiquê do envolvido do que suas intempéries.

Tolkien entra num terreno arenoso entre estes tipos de narrativa. O criador de Senhor dos Anéis passou por perrengues na vida, como a perda da mãe precocemente, ter de deixar o lar, mudar de país e enfrentar uma escola aristocrática com bem menos recursos que seus companheiros até, em idade adulta, participar da batalha de Somme, o embate mais sangrento da Primeira Guerra Mundial.

Todos estes capítulos, no entanto, são dos primeiros trinta anos do mestre, e a criação de seu legado literário, fora rascunhos e ideias em hospitais e trincheiras durante a guerra, se deram no restante de sua passagem terrena, já mais serena e estável, como Professor Titular de Oxford. O longa, cuja abordagem é principalmente no amadurecimento de Tolkien, um coming of age com várias convenções do gênero (um grupo de amigos, paixão, dramas particulares e um mestre que muda o rumo de tudo num período de aparente desesperança), até mostra boa iniciativa ao retratar o surgimento da lenda, ao invés dos anos que abordam a criação e lançamento de suas obras, pulando anos para ressaltar diferente passagens de seu esforço criativo (como o Jobs escrito por Aaron Sorkin). No entanto, o peso das inspirações acabam prejudicando e tornando o longa como um porto de referências, o que seria natural em certo nível, porém é utilizado com pouca delicadeza e forçadamente, uma espécie de "George Lucas In Love" se levando a sério demais. São momentos que parecem querer lembrar o público que o aparentemente mundano homem do filme foi alguém tão notório, mas quebram a sutileza e normalidade da narrativa, traços importantes justamente para humanizar uma figura emblemática e que por isso, ganhou ares míticos, divinos e intangíveis.


Há, no entanto, virtudes em Tolkien. Edith, esposa de décadas e musa do escritor, a quem baseou e dedicou sua lendária personagem Lúthien (nome gravado no túmulo dela, enquanto no seu está Beren, o mortal pelo qual se apaixonou), recebe um reconhecimento constantemente negligenciado nas biografias dedicadas a J.R.R. A atuação de Lily Collins é doce e tenra, mas também cheia de vigor e apaixonante, criando uma dinâmica certeira com Nicholas Hoult, adotando o romance como um cerne propulsor para grande parte das escolhas e eventos superados por Tolkien, o que pode soar melodramático, mas considerando que a lenda da elfa Lúthien com o mortal Beren foi baseado em ambos, é de se acreditar que, apesar de metaforicamente, Edith salvou a vida de Tolkien, desempenhando um papel infinito em tudo que ele realizou posteriormente.

Digo isto pois há outros personagens retratados com suma importância na criação de Tolkien, seus amigos de escola e com os quais formou a T.C.B.S, algo como Clube do Chá, Sociedade Barroviana, em que os quatro jovens discutiam arte e...tomavam chá, provavelmente a coisa mais britânica possível. A relação dos quatro é de apoio e crescimento mútuo, diversão, provocações e competição, algo natural em grupos de amigos, mas também deixando claro o ambiente conservador e exigente que viviam, e que marca o estilo literário perfeccionista, detalhista e rígido de Tolkien, cujas escrituras deixam claro ser alguém cuja personalidade não seria tão atrativa para um filme com mais de cem minutos, e aí as maiores liberdades criativas da película são justamente aproximar o lendário escritor ao público contemporâneo, numa era em que é um nome mais conhecido do que lido.


É uma trama claramente romantizada e sem grandes pretensões, mas com os maiores méritos em sua leveza e entretenimento, se distanciando do clima intelectual e formal que permeou a existência de seu protagonista. Tolkien, o real, odiaria. Não é a ideal, mas talvez esta tenha sido mesmo a melhor forma de vê-lo, ou engrandecê-lo, hoje em dia, destacando principalmente como, por mais genial que seja, uma mente brilhante não se forma sozinha.

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