Meu Pai (2020) - Crítica

"A existência precede a essência", diz a premissa primordial do existencialismo de Jean-Paul Sartre. O que significa, basicamente, que nós somos a combinação de nossas experiências, definindo a nós mesmos, ou seja, estabelecendo nossa consciência, durante a vida, com a construção de memórias. É a interação com o mundo, pessoas e ações, que estimula o cérebro, nos molda e mantém ativos. 

Nesta perspectiva, não há doença mais trágica do que o Alzheimer, já que ela destrói, com o tempo, todas as estruturas que nos definem, fundamentalmente desintegrando nossa própria essência. Começa com lapsos de memória à curto-prazo, até desenvolver-se a um estado em que perde-se a noção de quem é quem, para que servem as coisas, e como realizar tarefas básicas de subsistência. 

E é nessa condição que se encontra Anthony, o personagem de Anthony Hopkins, escrito pessoalmente para ele, no longa de Florian Zeller, adaptando sua peça. Um homem que demonstra boa fala, orgulho de sua inteligência e segurança, mas descontrole total do próprio declínio cognitivo. Iracundo nos pequenos momentos de lucidez, ele é bruto e sarcástico com todas as cuidadoras que vêm lhe prestar serviço, mas principalmente com sua filha, Anne (Olivia Colman), a quem declara, por vezes, ser manipuladora, assim como não exibe receio ao declarar abertamente que sua outra filha era a favorita. 

Apesar de não ter relação direta com nenhuma vítima do Alzheimer, já tive contato com vários idosos que sofrem da enfermidade, e nunca fiquei tão marcado por outra debilidade. Apesar de fisicamente íntegros e, pode-se dizer, até felizes, são pessoas como que paradas no tempo, misturando recordações, presas em uma época específica e sempre ansiando algo que há muito já passou. Não consigo imaginar situação pior para se estar, principalmente por não se ter a consciência dela. Quem poderia sofrer mais, então, que alguém que exibia tanta segurança e satisfação na própria intelectualidade, se vendo perdido e desconexo da própria percepção, nos raros momentos de esclarecimento. É até compreensível as passagens de ira e grosseria. 

Mas a despeito da temática sensível e instantaneamente fascinante, o que difere "The Father", no original, de qualquer outra obra que também retratou o Alzheimer, é a tentativa imersiva do texto de Christopher Hampton e Zoller, assim como da montagem de Yorgos Lamprinos, buscando arquitetar a narrativa de acordo com uma ideia da percepção que Anthony enfrenta, tudo isso sem mera advertência. O filme se desloca sem elipses aparentes, por vezes até sem cortes, delineando mais de décadas, figuras distintas e até mesmo o apartamento qual grande parte do longa discorre, com alterações ínfimas e que passam facilmente despercebidas. Assim, achamos que estamos em um jantar, associamos um rosto a um nome ou aguardamos uma mudança, para depois vermos tudo revirado, sem nada daquilo ser realidade, ou então presente. 

É uma escolha audaciosa que torna a experiência labiríntica, maximizando o que somente podemos ter uma impressão, que é a experiência de conviver com o Alzheimer, sem ter o aparato cognitivo para conseguir explicar, mas somente perceber, por vezes, que há algo errado. São os olhares destas exíguas tomadas de consciência que tornam a atuação de Hopkins uma das mais sensacionais de sua invejável carreira, aqueles em que ele se atenta para a própria incapacidade de decifrar o que acontece, de que algo além de sua faculdade mental lhe trapaceia. 

O próprio apartamento de Anthony - ou que ele acredita ser - serve de materialização desta confusão. Grande, mas estreito, escuro, com paredes de um azul melancólico e com uma pequena fresta de luz que rareia em meio ao asfixiante local. Zoller emula Ozu em buscar pillow shots dos quartos vazios, inabitados e sem vida, enquanto Anthony se refugia em sua fortaleza em situações de contrariedade. Seu flat, qual demonstra extrema afeição, é um imóvel dédalo, que cada vez menos lhe pertence, até devidamente não ser mais sua casa, sem nem ele mesmo atentar a isso, tendo somente a vaga ideia de estar onde passou tantos anos. 

Consequentemente, essa abordagem acaba por atrair a empatia e a misericórdia através da impiedosa crueza que não somente ilustra, mas nos joga para dentro da desordem psicológica que Anthony vive. O que ele vê e sente, é o que vimos e sentimos, incapazes de diferir a realidade tátil da imaginação passada para sequer fazer uma acusação de maus-tratos. A busca não é pela aproximação através da condescendência, algo visto em Still Alice, mas sim da observação impotente da obliteração do indivíduo em uma balbúrdia que simula ele próprio, como um parasita que libera a lucidez por cada vez mais breves momentos, estes que servem, seguidamente, somente para provocar dor e desamparo ao perceber-se ultrapassado. 

Até por isto, The Father, ocasionalmente, até mais que um drama, é um thriller, algo impresso na trilha de Ludovico Einaudi, que reforça o desconforto e insensatez do mundo de Anthony conforme este se encolhe em irracionalidade. 

Mais desoladora é a constatação, fatídica e seca, de que não há escapatória. Não há cura, nem conforto. O corpo vive, mas a mente definha. 

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