Better Days (2019) - Crítica

Então, por algum motivo, eu achava que esse Better Days fosse um filme sobre boxe. Eu tenho meus contatos pra conseguir obras do leste-asiático obscuros ou ainda não tão conhecidos, e o tinha adquirido tem uns bons meses. O pôster registrado no IMDB, à época, era bastante banal e mostrava dois jovens sujos, machucados e suados, ele em posição de luta. Perfeito cartaz para um melodrama de redenção através do esporte. O deixei empoeirar nos meus arquivos, até que a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2021 recolocou-o na memória: "Isso até que pode ser bom".

Bem, primeiramente, Better Days não é, exatamente, um filme sobre Boxe. Mas é bom, muito bom. 

O tema do bullying, nessa era da hiper-informação que vivemos, já parece um assunto retrógrado, quase como fazer um longa focado no etilismo e cigarro hoje em dia. Os problemas não são nem drogas ilícitas. Machismo, feminismo, homofobia, racismo. São estes os temais sociais destacados e que garantem atenção na temporada de premiações. Bem, e devem ser mesmos, mas é notório relembrar, também, que o despertar para uma nova era não apaga os pecados da outra, e sim o carregam juntos, e nada seria tão condescendente quanto enterrar uma mazela como se suas vítimas não fossem mais rentáveis na indústria cultural. Pois os meios de entretenimento, sendo o cinema um dos principais expoentes, vivem sim da mercantilização do preconceito, e se em muito servem para atentar a questões relevantes para a sociedade, servindo como espelho ao que somos e revelando verdades escondidas sob o tapete, também anda de mãos dadas com tendências e rentabilidade, muitas vezes acima do humanitarismo. 

O bullying, esquecido por trás de outras temáticas tem algum tempo, ainda recebe forte destaque nas mídias do leste-asiático. Eu possuo um histórico em doramas, e todo drama escolar coreano ou japonês vai discutir perseguições a alunos específicos por suas diferenças. Diferentes, mas muito similares em vários aspectos, intercambiáveis através de séculos de apropriações e trocas culturais. A China, por mais que seu governo busque a censura, não se difere dos companheiros. Apesar da manutenção de sua forma de governo, há uma coalisão, mormente com Japão e Coreia do Sul, num desenvolvimento bastante imediato e impulsivo, avançando décadas dentro de poucos anos, retratos vistos em filmes como os chineses "So Long, My Son", de 2019, "In the Heat of the Sun", de 1994, "An Elephant Sitting Still", de 2018, o coreano "House of Hummingbird", de 2018, as filmografias de Edward Yang e Wong Kar-wai ou Ozu e Yoji Yamada. Cada um com seu tom, são obras ou profissionais que lidam com disparidades abissais que escancaram o despreparo da população para um avanço tecnológico e científico tão radical, desamparando os mais velhos e criando um distanciamento muito grande com as novas gerações, como se pertencessem a mundos diferentes. Essa negligência com o mental, o intrapessoal de cada indivíduo, gerou sociedades reprimidas e isoladas, despreparadas e tímidas para lidar consigo mesmas. O reforço numa homogeneidade, e não somente isso vindo do Partido Comunista Chinês, explodiu em internalizações sufocantes e que são ou retraídas a um ponto patológico e costumeiramente fatal, ou vociferadas com abundância em violência, física ou mental. Não em vão, são os países de particularidades como os Hikikomori e o Ijime. Na avidez por qualificar seu povo tecnicamente, ignorou-se o aspecto humano, hiper-exigindo rotinas de competitividade tóxica e achando que o Lazer compensa a falta de tato pessoal e social. 

Assim como o japonês "Harmful Insect", lá de 2001, ou o coreano "Han Gong-ju", de 2013, o chinês (de Hong Kong), Better Days, trabalha com as consequências de décadas de displicência psicológica e do pensamento pernicioso que a cultura do mais trabalho, mais esforço e menos saúde provoca. Ao final do ensino médio, vemos alunos soterrados em livros e estudo, se preparando para exames de entrada da faculdade num verdadeiro regime terrorista, filmando os pátios e salas da escola como campos de concentração, com professores e cartazes enormes vociferando ou exibindo frases com chavões motivacionais. Todo o futuro deles depende disso, e os tutores não hesitam em afirmar que os que falharem, são fracassados que terão uma vida difícil. Logo no começo do longa, uma aluna comete suicídio, e as investigações e flashbacks são incisivos em destacar o bullying pesado que a garota sofria como causa disso. A polícia investiga e suspeita, para não dizer sabe, o motivo de sua morte, mas sem evidências nem suporte da escola fora palavras tão vazias e automáticas quando os bordões de inspiração, o caso logo é deixado de lado. Ela, é claro, não era a única aluna vitimizada naquele ambiente militar. Chen Nian, vivida por Dongyu Zhou, recatada e retraída, andar encolhido e olhar vacilante, é um alvo óbvio. 

É fácil para um espectador mais casual, ignorante ou sortudo, questionar um certo sensacionalismo em como o bullying é mostrado. Vale dizer também que estamos na sociedade comandada por um presidente adepto da argumentação do MiMiMi, onde não é difícil achar, na internet, adultos dizendo que bullying é termo chique e que isso sempre existiu, e que isso os transformou em homens, blábláblá. Os adultos do universo do filme não dizem isso abertamente, mas numa cultura que defende a uniformidade do coletivo suplantando o indivíduo, é a vítima que sofre de via-dupla, não somente a perseguição física ou psicológica do bullying, como as acusações dos responsáveis que ela pediu por isso (e qualquer semelhança com o que vemos aqui, em que tentam culpar mulheres por seduzirem estupradores, não é coincidência), pois por mais diferente a cultura, muito se repete em nossa espécie. 

Mas voltando à primeira frase do parágrafo anterior, uma busca rápida no google expõe centenas, senão milhares aos pacientes, de links de vídeos, artigos, matérias e fóruns discutindo e noticiando casos de abuso nas escolas chinesas, do Japão e da Coreia. O que se pode inferir é uma sintetização das violências na protagonista, ou nem isso. A primeira parte do filme se concentra nas variadas e abomináveis violações que Nian sofre, e é insuportável tolerar sem dar um pause para refletir ou meramente descansar. Isso vendo, agora imagine sofrendo. O diretor Derek Tsang, no entanto, evita o tragedy porn por manter um cerne temático e utilizar dramaticamente toda a empatia ganhada naturalmente pela protagonista por qualquer um que não seja psicopata. 

A dramatização da narrativa para introduzir o debate de uma maneira não-didática e ainda lúdica, entretanto, tropeça por vezes ao investir num melodrama típico da escola popular (o longa fez mais de $200 milhões em bilheteria) da região, apostando num romance que flerta e ultrapassa o limite do utópico, fugindo, aqui e ali, da questão principal. No entanto, são ferramentas, que por mais que se reconheça uma fragilidade racional, funcionam emocionalmente justamente por oferecerem uma fuga, uma recompensa no final de tudo aquilo para Nien (e é engraçado notar que, enquanto no filme ela está no ensino médio, e Bei, seu protetor, é um delinquente mais velho, na vida real, a atriz possui 29 anos, contra 20 do Idol chinês Jackson Yee, que personifica o rapaz). Fica a sensação de que poderia ser extraído um grande romance dali, ao invés deu uma inter-relação de gênero, envolvente, mas questionável na resolução. 

Acontece que, na época de seu lançamento, lá em 2019, o governo chinês, no auge das políticas conservadoras no aniversário de 70 anos do PCC, retirou o filme do Festival de Berlim, o engavetando por meses e permitindo o lançamento posterior somente com alterações, incluindo um prólogo e epílogo que claramente destoam do tom do restante do longa, conferindo um senso mais pró-institucional e otimista do que a fita em si demonstrou, além de cortes na forte cena principal. Na versão original, ainda que bem-intencionada, a polícia local se mostrou insuficiente e incompetente para solucionar os casos e causar qualquer efeito no matadouro da escola, uma clara crítica ao governo, completamente atenuada e revertida nos incrementos posteriores. 

Um governo que censura um filme para corrigir uma ótica incompetente e conivente, e falsificar uma imagem de pudor, empatia e sagacidade. Uma edição que por fim comprova o argumento do longa, em que colegas, professores e pais fazem vista grossa ao agressor e acusam ou fecham os olhos para a vítima, e logo depois saem sorridentes e prontos para o cotidiano, esquecendo os deixados para trás em egoísmo ou instinto de sobrevivência. 

Por si só, fazendo o exercício possível para preservar a memória do que seria o projeto sem modificações, Better Days soa como um alerta e um pedido de socorro, em que a fantasia é a única alternativa ao suicídio dos marginalizados por suas diferenças, condenados pela introversão, pobreza ou o que quer que seja. Difícil crer, afinal, que dias melhores virão, por mais patética que seja a tentativa do PCC em destacar isso. 

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